quinta-feira, 8 de junho de 2017

Salinger como experiência religiosa.

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Recentemente recomecei a leitura de “Franny & Zooey” de Salinger, um livro que reúne duas novelas escritas nos anos 50 pelo autor de “O Apanhador no campo de centeio” e, enquanto lia a primeira novela, que retrata um almoço frustrado entre a filha mais nova da família Glass, de 20 anos e seu namorado, me veio a necessidade latente de escrever um texto sobre este autor que tanto respeito chamado Jerome David Salinger.

Mais conhecido por “O Apanhador no Campo de Centeio”, Salinger não é um escritor para todos, ele não é um gênio da literatura mundial nos moldes de Tolstói, Dostoiévski, Poe, Kafka ou Agatha Christie. Lhe faltava o ímpeto de concluir uma narrativa de forma coesa, desenhar um círculo com suas histórias e abraçar a humanidade. Ao contrário dos maiores autores que você consegue imaginar no panteão de melhores escritores de todos os tempos, as obras de Salinger não falam com todos e essa nem era a sua intenção. “O Apanhador no Campo de Centeio”, sua história mais conhecida é um livro feito para um grupo muito seleto de seres humanos: homens, mais especificamente, garotos. É um livro para colegiais e por esse motivo eu aceito as críticas que escuto acerca deste, que é o meu livro favorito.

É a história de um garoto rico, que após ser expulso de seu colégio para garotos ricos, passa alguns dias vagando por Nova Iorque para não ter que encarar seus pais, expondo para nós, os leitores, sua visão de mundo existencialista, julgando as pessoas que não gostava, fazendo idiotices, desperdiçando tempo e dinheiro numa jornada sem rumo, porém honesta e é por isso que esse livro fala tanto com garotos colegiais. Por que apesar de Holden ser um garoto superficial, ele busca um sentido e, para ele, aquilo tudo que ele sente, superficial ou não, é real e quando somos adolescentes, tudo que sentimos, por mais superficial, negativo e infantil que seja, é real também e Salinger captou isso e o expôs de forma honesta, livre de julgamentos e impressões moralistas.

O caminho que Holden segue é linear e natural, você não segue simplesmente o personagem, você vive as experiências com ele e isso não é resultado apenas de um talento natural que o autor tinha para escrita, ele, com certeza tinha muito talento, mas também é resultado de um trabalho de conhecimento profundo de literatura e escrita e isso é algo que é notável em todos os seus trabalhos, principalmente em “Franny & Zooey”.

Salinger era muito mais leitor que escritor. Veja o número de trabalhos publicados por ele, apenas um romance, duas compilações de novelas, uma compilação de contos e outros tantos contos não compilados. É pouca coisa e apesar dele ter sido um recluso pela maior parte do seu tempo, temos que considerar apenas aquilo que foi publicado em sua vida, pois não dá pra ter certeza se ele escreveu coisas enquanto recluso ou não (apesar de tudo indicar que sim!). Ele consumia diversos autores, a maioria de ficção e narrativas, dos clássicos russos aos seus contemporâneos. Ele fez faculdade e quando serviu ao exército dos EUA durante a II Guerra Mundial não foi para a linha de batalha, servindo junto a contrainteligência do exército estadunidense pelo seu conhecimento em francês e alemão. Ele sempre fora um homem das letras e, apesar disso, seus primeiros trabalhos foram rejeitados e um de seus editores, William Shawn, comentou que sua escrita precisou ser refinada a fim de ser publicada nos moldes da The New Yorker, pois era muito formalizada e sentimental.

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Ele trabalhou para chegar onde chegou, literariamente falando, do contrário, não poderia ter sido elaborada uma passagem como essa:
“Ainda que brilhantemente ensolarada, essa manhã de sábado exigia um sobretudo e não apenas um casaco; a semana decorrera toda amena, e todo mundo esperava que se mantivesse assim para o grande fim de semana... o fim de semana do jogo com Yale. Dos vinte e poucos rapazes que aguardavam na estação a chegada de suas namoradinhas pelo trem das dez e cinquenta e dois, não mais do que seis ou sete se atreveram a ficar na plataforma fria e desabrigada. Os outros, em grupos de dois, três ou quatro, de cabeça descoberta e fumando, passeavam pela sala de espera e falavam numa voz que, quase sem exceção, soava academicamente dogmática, como se cada um dos moços, em sua estridente intervenção, estivesse resolvendo de uma vez para sempre alguma questão sumamente controvertida, uma daquelas em que o mundo não-universitário andara durante séculos metendo os pés pelas mãos, sem encontrar uma resposta – excitante ou não.”

Este é o primeiro parágrafo de “Franny”, a primeira história do livro supracitado que estou relendo e isto é um apurado exemplo de como se iniciar uma história ideal. Não temos apenas a ambientação física da história (estação de trem), como também temporal (manhã do final de semana do jogo de Yale), além do essencial dos personagens principais, já sabemos, por aí, que tipos eles são. Homens ricos, universitários, que vivem debatendo de forma infrutífera questões que assolam a humanidade desde sempre... É o típico tipo de personagem com o qual Salinger (e seus leitores) se identificavam.

No entanto, a história se centra em Franny, uma mulher universitária de 20 anos que se encontra numa crise existencial com raízes religiosas, mas isso só será debatido a fundo na segunda história do livro. Esse primeiro parágrafo é feito apenas para segurar a atenção do leitor mesmo e como isso é bem feito!

No parágrafo seguinte temos a descrição de Lane, o namorado de Franny, depois a íntegra de uma carta que a menina escrevera a ele, notamos que ele é apaixonado de verdade pela moça, conhecemos um pouco mais de sua personalidade impassível ao lermos um diálogo dele com um colega de faculdade e na quinta página do conto conhecemos Franny, finalmente. A partir daí, seria natural uma quebra de ritmo, mas a história continua, como se fosse escrita num fôlego só, com passagens brilhantes como:
“Lane localizou-a imediatamente e, apesar de tudo o que estava tentando fazer com a fisionomia, o braço que ele esticou para o alto continha toda a verdade.”

e
“Outra vez cheia de remorsos, apertou na sua mão a mão de Lane, entrelaçando carinhosamente seus dedos com os dele.”

Após isso há ainda uma transição sútil, porém notável que dá um salto de quase uma hora no tempo da história e, em seguida, uma cena fantástica, que se estende por dúzias de páginas, com diálogos e descrições de acontecimentos cotidianos, deixando implícita uma atmosfera sombria, tensa, com um crescimento exponencial de suspense até culminar na “tragédia” final e uma conclusão pra lá de ambígua.

E o mais surpreendente é que tudo isso é feito num núcleo bem seleto de personagens, ele faz problemas simples, cotidianos até, algo grande. Isso aproxima os leitores de seus personagens. Ainda que não fale com todos, é algo puramente humano, exatamente por isso. Por não falar com todos.

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Um terceiro ponto para tornar a leitura de Salinger tão prazerosa é a compreensão dos caminhos de sua carreira. Ao longo dos anos, Salinger foi perdendo o ímpeto revoltado, a urgência em contar histórias e os diálogos se tornaram mais esparsos, expondo filosofias e se aproximando dos romances religiosos tão referenciados em suas últimas histórias. É quase como se fossem as obras de maturidade do autor. Te fazem pensar aonde ele chegaria (ou chegou, se os boatos de que ele continuou escrevendo forem reais) com a família de crianças superdotadas que ele havia criado. Em “O Apanhador no Campo de Centeio” Holden nos diz que um autor bom de verdade é aquele que te faz ter vontade de ligar pra ele assim que você termina de ler seu livro. Salinger não te deixa apenas com vontade de ligar pra ele e conversar um pouco, mas te faz ter vontade de encontrar ele, inspira amizade e talvez, por isso, tenha tido tantos fãs obscessivos.

Ao mesmo tempo, ainda que os personagens não tenham a maturidade necessária para que o mundo real exige, eles, ou estão no caminho até lá, reconhecendo essa falha e/ou existe uma razão para eles serem assim, no caso da família Glass, seus personagens nunca superaram a morte do irmão mais velho, Seymour.

As histórias não são apenas extremamente bem escritas, narrativas de conteúdo simples, porém guiadas com tal maestria que fazem da sua leitura algo simples, porém recheada de conteúdo, algo conciso. As histórias são ainda sobre seres humanos, suas crises e seus dramas, por mais infrutíferos ou infantis que sejam, são reais para seus personagens, assim como coisas infrutíferas e infantis foram reais para nós um dia.

Ler Salinger é uma experiência religiosa, porque é, de fato, uma leitura que evolui com você. Não é como ler Dostoiévski, que exige que você cresça para que mais coisas sejam reveladas, para que você consiga entende-lo. Ainda assim, ela é exigente, pois tem um início marcado, é naquela fase estranha da adolescência em que você não se encaixa em lugar nenhum e tem raiva do mundo. Também é voltado para um público bem especifico, se você não tiver nascido com um par de bolas e um pênis dificilmente irá entender suas histórias (e mesmo que entender, não será por completo), então ela evolui contigo. Depois de “O apanhador no campo de centeio” e suas primeiras histórias, você passa para os contos e novelas posteriores, conhece a mão de Deus e a busca de sentido na vida se torna menos objetiva. Por fim, você se pega relendo “O apanhador no campo de centeio” com a mesma intensidade e paixão de quando tinha 15 anos, porém não é mais com a mesma identificação e sim como um colega mais novo, quem sabe o seu irmão ou ainda um “mentorado”? Você o entende, mas não concorda, ainda assim, sente uma intensa simpatia por ele, afinal, você passou a conviver com ele.

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Então, faça um favor a si mesmo e vá ler Salinger, infeliz criatura!