terça-feira, 31 de julho de 2018

Dica cinematográfica: "Contos das 4 Estações" de Éric Rohmer (1990-1998)

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Hoje não venho com uma dica, mas com 4 dicas cinematográficas. Como não poderia deixar de ser, é claro que uma série de 4 filmes que merecem dicas cinematográficas só poderia ter sido feitos pelo mais genial de todos os diretores de cinema de todos os tempos (e eu vou explicar o que isso quer dizer com relação ao magnânimo Truffaut): Éric Rohmer.

Produzidos nos anos 90, com dois filmes separando os dois primeiros dos dois últimos filmes da série, esses 4 filmes contam histórias de amor (sempre!) relacionando-os com as estações do ano em que as histórias se passam. Assim como as 4 estações criam um todo coerente ao qual nós chamamos ano e representam uma volta completa de nosso planeta em torno do Sol, esses quatro filmes criam um todo coeso, apesar de suas diferenças, que aparentam serem grandes, mas não são. O que podemos chamar de “essência” dos 4 filmes permanece a mesma, independente de seus personagens, suas trajetórias e históricos. Independentemente da época do ano em que a história se passa.

51v4vmnseal-_sy445_Mas antes, vamos falar dos filmes. O primeiro deles “Conte de Printemps” (ou “Conto de Primavera”) é o meu favorito dos quatro e tem um início parecido com outro favorito meu feito pelo mesmo diretor, “L’ami de mon ami”. Jeanne, uma professora de filosofia não se sente bem em ficar na casa do namorado, que está viajando e decide voltar para sua casa, esquecendo-se que havia emprestado-a para sua prima, que ainda está utilizando-a. Sem saber o que fazer, ela é convidada para uma festa na casa de uma amiga distante e lá, casualmente, faz amizade com Natacha, uma menina de 18 anos, que lhe oferece um lugar para passar a noite, sua casa, que passa quase o tempo todo vazia, já que seu pai está sempre fora da cidade e sua mãe os abandonou quando ela tinha 12 anos. Dessa relação surgem diversos diálogos extremamente inteligentes, discussões sobre a vida pessoal das duas protagonistas e uma relacionamento forçado que apresenta o seu final desastroso já nos primeiros momentos em que começa a se delinear.

768f879673d02f4849530680a6af659cO segundo filme, “Conte d’Hiver” ou “Conto de Inverno” é o meu menos favorito e ouso dizer que um dos filmes menos inspirados em toda a filmografia do diretor, embora apresente coesão dentro do contexto da tetralogia. Sua história foca em Félicie, que, durante umas férias de verão, apaixonou-se por um cozinheiro. Eles passaram por momentos extremamente apaixonados e fazem promessa de voltarem a se encontrar. No entanto, seguindo a regra de que “amor de verão não sobre a cerra”, somos jogados 6 anos no futuro e conhecemos uma Félicia que carrega uma filha, mora com a mãe e se encontra dividida entre dois homens, que nunca deixam de ser uma sombra do que foi aquele cozinheiro pelo qual ela se apaixonou anos atrás.

thumb_56443_film_poster_293x397O terceiro filme é um dos meus favoritos também e se chama “Conte d’Été” ou “Conto de Verão”. Este filme é um excelente coming-of-age, que foca em Gaspard, um jovem, recém-formado professor de matemática com muitos talentos musicais que recebe a oferta de passar o verão na casa de veraneio de um amigo. Ele aceita a proposta, dando o pontapé para um breve, mas intenso verão de amor e crescimento ao lado de uma belíssima e jovem antropóloga, que trabalha como garçonete de um restaurante local.

mv5bngflnmnimzmtzmm4nc00yjkxltg4nzctztewmmm1zdiwodhkxkeyxkfqcgdeqxvymjqzmzqzody-_v1_uy268_cr40182268_al_O quarto e último filme da tetralogia é o meu segundo favorito dos 4. Seu nome é “Conte d’Automne” ou “Conto de Outono” e conta a história de Magali, uma viticultora que é convidada para o casamento da filha da sua melhor amiga, que resolve arranjar um amante para ela. Ao mesmo, uma amiga de Magali também decide arranjar um amante para ela, já que Magali anda muito solitária e o resultado não poderia ser nada mais do que uma excelente comédia humana.

Todos os quatro filmes são românticos e tratam de triângulos amorosos, mas mais do que isso, Rohmer é também um mestre, assim como Shakespeare, em tratar do desejo humano. Ele, mais do que qualquer outro diretor, entendeu perfeitamente a relação mimética dos desejos humanos e quase a totalidade de sua obra é feita para escancarar isso aos olhos do seu público. No entanto, isso é feito da melhor forma e a melhor forma, infelizmente, passa despercebida pelos olhos e ouvidos não atentos a teoria mimética.

alexia-portalA tal teoria, elaborada por René Girard, nos diz que o desejo passa por uma relação triangular, onde o nosso desejo por qualquer objeto passa por um terceiro, o mediador, que pode ou não ser o nosso rival em busca desse objeto. Esses 4 filmes nos mostram o drama primordial de nosso desejo, a rivalidade mimética que pode surgir com nossos mediadores. Em “Conto de Primavera”, Natacha tenta atuar como mediadora entre seu pai e Jeanne, mas de maneira ingênua, sem compreender que o desejo surge de forma premeditada, mas sempre despercebida por aqueles que desejam. Desejamos pelos olhos de outros, mas sem saber disso, porque se sabemos, quebramos o desejo. É sempre uma relação que não notamos. Ao deixar bem claro suas intenções, Natacha mina todas as possibilidades que seu plano dê certo. O mesmo ocorre no quarto filme, que encerra a tetralogia da maneira como ela começa, fechando perfeitamente o ciclo. Rosine, interpretada por uma das mulheres mais belas que já pisou na face da Terra, Alexia Portal, tenta fazer Magali se apaixonar por Étienne, seu ex-professor e ex-amante. No entanto, assim como Natacha (e ironicamente, as duas são muito jovens), deixa transparecer suas intenções e ao final é lógico que não dá certo. Em “Conto de Outono”, Rohmer nos dá uma resposta e Magali vai se apaixonar apenas por aquele que não lhe foi apresentado como um amante em potencial e que tentou, até o climático final, manter essa mentira. Ao contrário do primeiro filme, Rohmer nos apresenta aqui as respostas que precisamos ouvir, a solução para o conflito mimético.

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Solução esta que foge completamente das mãos de seus personagens nos filmes do meio da tetralogia. Em “Conto de Inverno”, Félicie se vê presa num triângulo amoroso, mas apenas por que seu objeto de desejo não pode ser conquistado. Seu objeto é uma paixão de tempos atrás, que sumiu, que ele sequer sabe o nome completo e não importa quantos namorados tenha, nenhum deles poderá cumprir com as suas expectativas. O final, é claro, tem que ser feliz, como todo filme de Éric Rohmer, que envolve personagens sinceros em seu amor, mas sua solução não é realista e acaba sendo mais clássico no sentido em que cumpre, exatamente, as diretrizes de uma comédia no seu sentido como foi elaborado pelos gregos. Quanto a “Conto de Verão”, Gaspard espera a visita da namorada e como ela não começa a se apaixonar pela garçonete. No entanto, ela não está afim dele e Gaspard se envolve com uma terceira garota. Sua atitude acaba despertando a atenção da garçonete, que só esperava uma confirmação de que o garoto realmente poderia conquistar garotas. Gaspard tinha em suas mãos duas garotas, embora não soubesse disso. O problema é que sua namorada aparece e aí a situação mimética foge completamente do seu controle e o final não é desastroso, apenas porque Gaspard foge antes que a barragem seja rompida.

Ele também consegue, finalmente, a garçonete no final.

Os “Contos das 4 Estações” são uma demonstração incrível da genialidade de Rohmer, mostram sua atenção para as investigações do maior cientista da área de humanas do século XX, René Girard e, assim como Shakespeare séculos antes, cria uma obra fantástica do ponto de vista mimético, que tem vestígios em toda a sua filmografia, mas se solidifica de maneira sublime nessa tetralogia. Rohmer é, de fato, o diretor de cinema mais genial de todos os tempos e isso não diminui meus elogios a Truffaut, que pode não ter sido o mais genial, mas, com certeza, foi o mais talentoso. Truffaut fazia filmes espetaculares de maneira sutil e quase sem notar, conseguia ampliar sua vida no cinema e fazer do cinema sua vida. Ele nasceu para isso e seu talento é incomensurável. Rohmer também fazia filmes como respirava, vinham para ele de maneira natural, mas nunca conseguiu expandir sua obra para terrenos tão vastos quanto Truffaut fez e vale lembrar que iniciou sua carreira após os desbravamentos de Truffaut na sétima arte.

tumblr_otpdan2xum1wuuz0po1_500De qualquer forma, esses 4 filmes de Rohmer nos apresenta obras de fazer inveja a qualquer cineasta, de maneira simples e sem grandes orçamentos, ele cria obras naturais, filmadas em poucas semanas, até de maneira casual. Os 4 filmes contam com as marcas do Rohmer, muitos diálogos, uma montagem natural, locações que passaram por poucas alterações e músicas apenas dentro do ambiente do filme. Tudo isso gera uma estética única, típica do cinema francês da nouvelle vague, mas com os avanços tecnológicos dos anos 90.

Enfim, me faltam palavras para fazer jus a essa tetralogia, então vou deixar apenas esse último recado: faça um favor a você mesmo e vá correndo assistir esses filmes, que são ótimos.

5 pontos

terça-feira, 10 de julho de 2018

Dica musical: "Have You Considered Punk Music?" do Self Defense Family (2018)

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Felizmente saiu mais um álbum do Self Defense Family. Apesar de ser muito diferente dos materiais anteriores da banda, esse CD não deixa de carregar todos os elementos que tornam o Self Defense Family uma das melhores bandas do post-hardcore atual.

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"Have You Considered Punk Music" tem um titulo pretensioso como todo CD do Self Defense, com títulos de músicas ainda mais pretensiosos, no entanto, engana-se quem espera mais um CD do Self Defense, pois aqui temos muita mudanças, a começar pela primeira canção, que nos apresenta um acordes muito mais dispersos, uma canção mais lenta do que estamos acostumados a ouvir da banda e uma harmonia mais sentimental.

No entanto, ainda carrega a típica atmosfera bizarra, estranha e distópica que fizeram a fama do Self Defense. Além disse temos as letras de Pat Kindlon, que estão extremamente criativas. Na primeira canção, temos um relato honesto, engraçado, mas singelo de seu relacionamento com sua namorada, figura central de seu instagram.

E as outras canções seguem o mesmo ritmo. Nenhuma canção aqui apresenta riffs de guitarra dançantes e barulhentos. O álbum todo é muito silencioso para ser bem honesto. As canções são mais lentas, porém isso apenas adiciona mais à atmosfera caótica que o SDF criou ao longo dos anos.

[bandcamp width=100% height=42 album=4100390961 size=small bgcol=ffffff linkcol=0687f5 track=1584619867]

É claro que essa mudança de ritmo, na verdade uma diminuída no gás que movia a banda para a frente pode afastar os fãs mais antigos, no entanto, as letras melhoraram muito. Deixando a pretensão de lado, Pat abraça uma abordagem mais descritivista e com isso se aproxima mais da poética tão desejada nos últimos álbuns.

Dessa forma, este CD não deixa de ser um prato cheio para os fãs de longa data da banda, embora possa desapontar os marinheiros de primeira viagem vindos dos mares do hardcore, punk ou indie rock. Sem contar que não é melhor que o último álbum deles, um verdadeiro clássico nesse momento.

4 pontos

quinta-feira, 5 de julho de 2018

Dica musical: "Live and Let's Die" do Kid, Feral (2018)

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Tá, eu não como essa banda foi parar na lista de CD's que eu tenho para ouvir, mas eu não me arrependo de ter me deparado com eles, porque a bagaça é boa demais!

Kid, Feral é uma banda punk/hardcore/scremo da Suécia, um trio pra ser mais exato, que lançou um dos álbuns mais excitantes do gênero em anos! Há uma semana falei da mudança de paradigma que o hardcore estava sofrendo e não é à toa que um dos melhores álbuns do gênero lançados nos anos recentes venha do norte da Europa, é realmente uma mudança enorme de paradigmas.

A banda acaba acrescente muitos elementos do noise-rock dentro de seu som punk, com vocais berrantes, quase ininteligíveis (em grande parte do tempo é ininteligível mesmo), mas também acabam adicionando elementos mais pop para suavizar o caos, o que quer dizer canções com mais ou menos 1 minuto e meio de duração mais lentas, com guitarras bem melódicas e vocais de spoken word, algumas apenas com elementos eletrônicos, mas tudo para culminar em mais gritaria e agressividade das boas.

É o típico som para se ouvir digladiando numa pista de dança fedendo a suor e abafada. É para poucos, mas eu gosto muito.

As letras, como não poderiam deixar de ser, são aquela "lacração" genérica de bandas punk, mas como é tudo gritaria não atrapalha de forma alguma. Sem contar que é uma "lacração", mas não chega a ser super-radical caindo no completo oposto do que eles são contra, então tudo bem.

De qualquer forma, "Live and Let's Die" é um dos trabalhos mais excitantes dentro do noise-rock/screamo/punk/hardcore/etc... e vale muito a pena escutar para quem gosta de agressividade, velocidade e gritaria em suas caixas de som.

4 pontos e meio

terça-feira, 3 de julho de 2018

Dica cinematográfica: “The Legend of Suram Fortress” (1985)

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Vindo direto de uma lista de filmes bizarros, esse daqui me chamou a atenção pela sua beleza e sutileza ao trazer para as telas um conto mitológico da Geórgia.

Produzido durante a Geórgia comunista, o filme de Sergej Parajanov (que chegou a ser preso por não concordar com as regras do regime comunista) e Dodo Abashidze (que segura um pouco a mão de seu parceiro de direção) conta a história da Fortaleza de Suram, uma fortaleza que está sempre sendo construída e está sempre ruindo. Isso até que o líder daquela terra consulta uma vidente que o diz que ele deve se sacrificar para que a fortaleza seja completada, se colocando dentro dela, como parte de sua construção.

É uma história de sacrifício por um povo, tal como já foi contada centenas de milhares de vezes ao redor do mundo, com um diferencial: aqui temos a direção de um dos mais inventivos diretores da União Soviética, um cara conhecido por produzir filmes belos. Neste caso não é diferente, pois Parajanov cria imagens dignas de pinturas. Sua utilização de câmera parada incomoda, mas acabamos relevando ao deixarmos nossos olhos serem guiados pelas belas imagens de paisagens do leste europeu, roupas tradicionais ricas em detalhes, animais exóticos e prédios antigos, mas imponentes.

Seu problema é a preocupação excessiva com as imagens, mas aí entra Abashidze, que controla um pouco os excessos de Parajanov, dando uma unidade ao filme, nem sempre sendo bem-sucedido em sua missão, mas ao menos ele tenta.

A história é dividida em capítulos e isso abre espaço para diversas cenas paradas belas e muito bem produzidas, mas a conexão entre elas nem sempre é clara e muito acaba ficando para a interpretação do espectador. Outro fator que afasta é a enorme utilização de aspectos tradicionais da Georgia, que estão muito distantes da nossa cultura e como são abordados de forma muito sutil, sem didatismo, o espectador ocidental comum acaba se afastando.

No entanto, isso não diminui de forma alguma o prazer que é assistir essa obra! Como já disse, as imagens são ricas e cheias de detalhes, a história apresenta uma unidade e apesar de levar um tempo até ela engrenar, ao final, percebemos a sensibilidade que ela cria e os laços que forma com a própria história do país a qual ela pertence.

É um filme para se conhecer a Georgia, de certa forma.

Enfim, “The Legend of Suram Fortress” é um filme muito belo, relativamente fácil de se encontrar pela internet e de um enorme conteúdo.

5 pontos