terça-feira, 5 de maio de 2020

Rematar Clausewitz: Além Da Guerra

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Um dos últimos livros de René Girard, Rematar Clausewitz: Além da Guerra é o esperado desfecho de seu pensamento revelador, servindo como ponto de partida para a eternidade.

Escrito na conhecida forma de diálogo que marcou um dos livros mais importantes para o pensamento de René Girard, Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo, com Benoît Chantre, Rematar Clausewitz trata-se das conclusões a que o grande filósofo francês chega ao descobrir um clássico de teoria de guerra alemão escrito ainda quando Napoleão dominava a Europa. O livro, chamado Da Guerra ou Vom Krieg no original em alemão, foi escrito por Carl von Clausewitz, um general alemão que perdeu para Napoleão e a sombra do imperador francês nunca deixou de assombrar a sua vida, levando-o a se juntar com os russos e passar o resto de seus dias exilado, longe da esposa e inconformado com os caminhos que a guerra tomava em sua época, ressentido, escrevendo o que viria a se tornar um clássico, Da Guerra.

Partindo do conceito de guerra em Clausewitz, que diz que a guerra nada mais é do que uma extensão da política, Girard elabora, utilizando-se não apenas das sábias palavras de Clausewitz, mas também de sua biografia, assim como a biografia de Schiller e madame de Stael, os confins da sua teoria mimética. Se a teoria do desejo mimético explica muita coisa, ela ainda não havia encontrado uma base histórica, que fundamentasse a linha da História para então conseguir elaborar uma ideia de futuro. E é aqui que entra Rematar Clausewitz.

Aqui Girard aprofunda o seu pensamento e eis o porque do título do livro. Não é apenas o remate de uma obra inacabada, no caso Da Guerra, mas também do remate da teoria mimética.

Clausewitz era um rival mimético de Napoleão, os dois viviam em confronto e essa posição permite que Clausewitz conclua que a guerra nada mais é do que um duelo, mas um duelo entre dois países, ou seja, um conflito generalizado, a escalação do conflito mimético que gera a crise, um processo amplamente discutido em Violence and the Sacred.

A guerra é o resultado de um conflito que se inicia entre indivíduos e acaba abarcando nações inteiras. O resultado dessa história nós sabemos, é a violência generalizada e eis a conclusão apocalíptica de René Girard: estamos caminhando para o fim do mundo.

Mas aí temos que dar um passo atrás e identificar o que isso quer dizer longe de qualquer misticismo: Apokálypsis significa "revelação" em grego. O resultado da rivalidade mimética entre pessoas gera um duelo que termina com o extermínio de um, quando ela se expande, a violência encontra um bode expiatório que serve para purgar a sociedade, mas o que fazer com relação às guerras entre nações? Nações inteiras serão eliminadas num processo que engole todo o mundo e o bode expiatório pode ser grande demais para ser abarcado em números. O resultado lógico é uma catástrofe e é nesse sentido que o apocalipse de René Girard deve ser compreendido, é apenas um cálculo lógico das situações atuais.

O problema é que Da Guerra é um livro inacabado, mas além disso, é um livro que não levou a uma continuidade do pensamento de Clausewitz, que tem um insight brilhante nas suas primeiras páginas para nunca mais retomá-lo. Sua famosa frase "a guerra é a continuação da política por outros meios" encontra-se logo no começo do livro e essa ideia não é retomada. Mas é a partir dela que Girard parte, podendo se apoiar em uma ampla história que vai desde o fim das guerras napoleônicas, passando pelas duas guerras mundias, uma guerra fria e culminando no terrorismo.

A guerra é a impersonalidade do conflito e hoje essa impersonalidade encontra o seu ápice nos ataques terroristas. Organizados por organizações terroristas que mal conhecemos, propagado por indivíduos que escondem suas faces e apoiando-se em ideologias que não conhecemos, são o ápice de uma guerra que nunca acabou e que mal compreendemos pois ela se esconde em nosso cotidiano. E se não nos identificamos com ataques terroristas aqui no Brasil, podemos dar um passo atrás e nos ater a um outro conflito muito ativo em nosso país: as guerras ideológicas. Girard nos alerta para esse novo conflito que invade os lares e esconde a verdadeira face da violência: as ideologias.

A guerra ideológica é apenas uma extensão da guerra armada e todos sabemos, afinal não era exatamente isso a Guerra Fria? E mesmo com a História a nos ensinar, nós ainda nos tornamos vítimas dessa violência, que hoje não encontra barreiras. A bomba atômica seria a última barreira para a violência e, de fato, deu fim a uma das maiores guerras que a humanidade já viu, mas sua existência não exterminou a violência, apenas a diluiu. Ninguém entra em guerra direta com os americanos , chineses ou russos, mas há mostras de violência indireta, inclusive de forma comercial, afinal, é esse o sentido de guerra comercial, não? A violência se diluiu e o conflito se espalhou. Aos olhos de Girard, vivemos tempos muito mais violentos do que os tempos dos duelos armados.

Então, o que fazer?

A solução Girard já nos deu em outros livros, apenas esclarecendo aquilo que já havia sido revelado para a humanidade há mais de 2000 anos: a verdade de Cristo. Aqui ele não tem problema nenhum em admitir que é um apologista, ele assume que é mesmo. Cristo colocou Deus no papel de bode expiatório revelando por inteiro o mecanismo que apenas perpetua a violência, uma revelação que deveria por fim à violência, mas se os cristãos continuaram violentos depois disso não foi por causa de Cristo, foi porque os cristãos não foram cristãos o suficiente.

Isso não quer dizer simplesmente se render para todos os malefícios do mundo, mas procurar entender profundamente a origem desse mal. Sabemos a origem das guerras comerciais, conhecemos a origem da injustiça, vimos o resultado em tentar mudar isso de maneira radical  e totalitária. Não deu certo. A solução para o capitalismo selvagem deve partir de uma compreensão plena da situação econômica do ser humano e abrir possibilidades para um crescimento econômico sadio. O lógica do lucro acima de tudo leva apenas a uma perpetuação da violência. Há soluções para isso, há pensadores caminhando nessa direção, as crises nos ensinam muito e tentar segurar as crises, virar as costas para elas, não irá nos colocar num lugar melhor.

Nas últimas de seu livro, Girard volta-se para a questão islâmica e o terrorismo. Apesar de mais novo que o cristianismo, o islã não compactua das mesmas conclusões que o cristianismo e o autor assume, sem pudor algum, que o islã é uma religião arcaica. No entanto, ele não nega que deveríamos estudá-la mais profundamente, compreender a mente terrorista, de fato. É só através dessa compreensão que iremos deter a violência.

O apocalipse de René Girard é uma proposta desafiadora, assustadora, poderia até passar como loucura (e acho que deve ter sido à época de seu lançamento), mas ler essa obra magnífica em tempos de pandemia é uma atividade esclarecedora.