quinta-feira, 30 de março de 2017

Dica Conspiratória: "Teoria da Terra Plana"

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A “Teoria do Ano de 2016”, uma ideia ancestral, considerada loucura por muitos, fatos por outros tantos e divino para alguns, a teoria da terra plana merece um post aqui n’O Sommelier de Tudo, não só pela sua ampla abrangência, mas também pela sua consistência.

De acordo com a teoria da terra plana, o mundo é uma espécie de disco, coberto por um domo, o firmamento do céu, que por sua vez, está por baixo do firmamento das águas (embora essa parte não seja um consenso). No centro do nosso planeta situa-se um monte de gelo ártico e em volta de nós uma enorme muralha de gelo, a Antártica (lembra uma série famosa de livros que virou uma série de TV com audiência recorde? Será que seu criador está querendo nos passar alguma mensagem subliminar?). Abaixo de nós encontram-se as colunas da Terra, provavelmente feitas de pedra. A gravidade seria originada pelo movimento ascendente que esse disco faz em meio à matéria escura que cerca a “bolha” onde o nosso disco se situa.

É uma teoria com muitas ideias e, infelizmente, eu não poderei apresentar todos os pontos (pe muita coisa, sério). Resultado de uma tradição multimilenar, com raízes profundas que podem ser traçadas até a Grécia Antiga e no Egito (embora haja insinuações sobre a esfericidade do nosso planeta em escritos do Egito Antigo). Ainda nos tempos de Plínio, o Velho, a teoria da terra plana já era amplamente rejeitada, vítima de sociedades ocultas que governam o mundo desde tempos imemoriais.

Com a passar das eras, a rejeição à teoria da terra plana não diminuiu, pois mesmo na Idade Média (o período das trevas sobre o conhecimento) a população em geral aceitava a ideia de uma terra esférica, inclusive a igreja Católica (embora o pensamento cristão medieval fosse limitado a teoria heliocêntrica, que considera o mundo o centro do universo, a ideia da terra esférica era amplamente valorizada), sendo, inclusive, um motivador para os navegantes europeus que sonhavam em dar a volta ao mundo.

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Por volta do séc. XVIII, a noção de que a Europa Medieval acreditava numa terra plana começou a ser difundida, embora não fosse baseada em fatos críveis. No século 19, Washington Irving escreve um livro que acende a fagulha inspiradora para os círculos defensores da teoria da terra plana e no século 20 é fundada a “Sociedade da Terra Plana”.

Ao mesmo tempos em que a teoria da terra plana ressurgia das cinzas da antiguidade como uma Fênix exuberante, diversos cientistas elaboravam teorias em cima de teorias que comprovam a esfericidade do nosso planeta. Teorias amplamente refutadas pelos teóricos da terra plana, mas que falham em explicar as razões para que a verdade seja escondida de nós. Alguns culpam os reptilianos, outros os illuminati e embora eles estejam conectados não há um consenso nas motivações deles, econômicas? Sociais? Políticas? Ambientais? Infelizmente, a teoria não chega tão longe e isso é uma falha, no entanto, com um histórico tão grande é só questão de tempo até que a verdade seja inteiramente desnudada perante a sociedade.

Teoria da Terra plana ganha força na internet - Terra plana e o logo da ONU

Com uma histórica rica e exuberante, defensores ferrenhos, uma organização invejável, a teoria da terra plana é um exemplo bem sucedido do que uma teoria da conspiração deve ser.

4 pontos

quinta-feira, 23 de março de 2017

Dica Musical: "Flying Microtonal Banana" de King Gizzard & The Lizard Wizard

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Já falei dessa banda aqui, mas foi na fase em que eu já não estava mais tão afim de escrever posts aqui, então vale dar uma aprofundada em quem eles são.

O King Gizzard & The Lizard Wizard é um hepteto de Melbourne, Australia, ou seja, uma banda de 7 pessoas fazendo um rock psicodélico com motivações conceituais por trás de cada um de seus 9 álbuns. O último deles, do qual vou falar hoje, é o “Flying Microtonal Banana”, um álbum que tem como principal motivo de existência uma guitarra modificada do guitarrista e vocalista da banda em microtom.

Microtom é um intervalo menor que um semitom, algo não encontrado tradicionalmente na música ocidental e que para um leigo como eu ou você quer simplesmente dizer que o som produzido pela guitarra dele é mais agudo do que o normal. Já se perguntou porque aqueles músicos indianos tocam uns instrumentos com tantas casas no braço, produzindo um som tão agudo? Pois é, em parte é por causa dos microtons, eu acho.

Mas enfim, como um instrumento afinado em microtom só pode ser tocado por outros instrumentos afinados em microtom, o vocalista da banda pagou para os outros integrantes conseguirem instrumentos modificados também e assim eles arranjaram mais guitarras microtonais, baixos microtonais e uma gaita afinada em microtom. Alia-se a isso uns sintetizadores, dois bateristas, percussão e um tradicional instrumento de sopro da Eurasia central chamado Zurna e voilá! Nasceu “Flying Microtonal Banana”.

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Ao contrário de “Nonagon Infinity”, cujo conceito era fazer um álbum em loop, que poderia ser tocado sem parar que você não saberia o começo, o final, nem quando ele começou a tocar primeiro, aqui a ideia principal é menos estrutural e mais sônica. Qualquer coisa que eles tocassem seria diferente e isso abre espaço para as letras se desenvolverem e as músicas se expandirem sozinhas.

As letras apresentam uma miríade de temas, mas todas compartilham um senso narrativo bem solto, porém notável, em que é percebido personagens se extasiando com acontecimentos brutais ou apocalípticos, assustadores e grandes demais para que eles pudessem existir. “Melting” é um bom exemplo ao nos apresentar um personagem elaborando um discurso sobre o aquecimento global e se forçarmos um pouco a barra podemos imaginá-lo no centro dos acontecimentos da canção seguinte “Open Water”, em que ele se encontra assustado com o derretimento das calotas polares e não reconhece mais a terra à beira-mar onde vive.

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As canções também respiram entre si, o que quer dizer que há um intervalo entre elas para que os temas possam se assentar. Em “Open Water”, por exemplo, somos apresentados, primeiro, ao som de ondas se chocando. Além disso, há uma grande variação de influências para cada uma das nove canções, do High-Life a trilha sonora de Spaghetti Westerns. Com seus instrumentos singulares, todas essas influências ganham um novo fôlego e evoluem naturalmente sob as asas de King Gizzard & The Lizzard Wizard.

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Enfim, “Flying Microtonal Banana” é um projeto ambicioso e bem sucedido, mas é apenas um quinto do que a banda prometeu nos apresentar esse ano, aumentando a expectativa e o padrão para o que está por vir. Esperamos que eles consigam manter o nível de excelência e a criatividade no mesmo patamar.

4 pontos

quinta-feira, 16 de março de 2017

Dica cinematográfica: "Silêncio" (2016)

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Mais um filme lançado em 2016, mas que só chegou ao Brasil em 2017. Meio chato isso, não? Pois é, mas esse filme compensa, porque é o melhor filme que eu assisti esse ano até agora.

O filme, dirigido por Martin Scorsese, estrelado por Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson, Yosuke Kubozuka, Tadanobu Asano e Issei Ogata, adapta o livro “Silêncio” de Shusaku Endo. A trama começa com a narração do padre Ferreira, um jesuíta que foi ao Japão e lá presencia a tortura e subsequente assassinato de diversos cristãos japoneses. Anos depois, em Portugual, é sabido que o padre Ferreira apostatou (termo usado para descrever a negação de sua fé por parte de padres) e dois padres são enviados ao Japão para investigar isso, o padre Rodrigues e o padre Garupe. Chegando lá, eles descobrem um Japão cristão devastado e comunidades minúsculas vivendo em vilas isoladas. Os padres devem manter-se trancados em uma cabana o dia todo para não serem vistos e só durante a noite podem cumprir suas obrigações de padre perante a comunidade. Um dos japoneses, Kichijiro, que já havia negado a sua fé para salvar sua vida, espalhou a notícia de que os dois padres estavam no país para uma vila próxima e o padre Rodrigues é enviado até lá. Após alguns acontecimentos, ele é preso pelo inquisidor Inoue e passa por diversas provações de sua fé, através de uma série de dilemas morais.

A premissa do filme já é instigante, adaptando um livro de um dos raros escritores cristãos do Japão, Shusaku Endo, que se preocupa em contar a história através do ponto de vista dos padres jesuítas. Infelizmente ainda não li o livro, então não posso dizer se é uma boa adaptação ou não, mas Martin Scorsese trabalha de forma magistral esse tema, muito estigmatizado e no qual afasta diversas pessoas, mas não, a Igreja Católica não é do mal, não escraviza as pessoas e os jesuítas eram pessoas bem intencionadas e que não cometiam atrocidades. Isso é mostrado de forma magistral no filme, pois ele expande e engrandece as discussões de fé, colocando em confronto a religião budista e a religião cristã católica, exposta tanto nos embates entre o padre Rodrigues e seus rivais de fé (o intérprete, o inquisidor e o padre Ferreira) quanto pelos seus monólogos internos, em que ele mesmo se questiona.

Auxiliando esse debate vem a direção fantástica de Martin Scorsese. Falar disso é chover no molhado, mas há momentos que merecem destaque, como o jogo de câmera usado na cela em que o padre Rodrigues é mantido preso. O filme é muito silencioso (piada não intencional), há uma ausência de trilha sonora, mas não chega a incomodar, pois há um embate subjetivo que cresce ao longo do filme e essa escolha, por manter os sons expostos no filme o mais natural possível, acaba engrandecendo esse embate, fazendo-o ganhar mais força e que auxilia a dar o tom épico ao final.

Além disso, como (quase) sempre, o filme é uma senhora Lição de Cinema, cheio de referências aos mestres da sétima arte da terra do sol nascente, como Akira Kurosawa (mais explícito nas cenas externas e montanhosas) e Nobuo Nakagawa (novamente, nas cenas em que Rodrigues está preso). A forma como a câmera é guiada pode parecer estranho num primeiro momento, mas se você traçar um paralelo com o cinema japonês da segunda metade do século XX irá encontrar semelhanças, podendo dizer que esse filme também é uma homenagem a essa tão tradicional e inspiradora escola de cinema.

É magistral.

Minha única ressalva é o M. Scorsese ter escolhido usar o A. Garfield como ator principal ao invés do A. Driver (que é muito mais ator) e mesmo assim o A. Garfield mandou bem, numa das melhores atuações da sua vida.

Aproveite que o filme ainda está nos cinemas (pouquíssimos é verdade) e que já tem em 1080p na Locadora do Ultra e assista sem preconceitos.

5 pontos

sexta-feira, 10 de março de 2017

Um relato de um hater do barcelona sobre o jogo de quarta-feira

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Eu sou um hater do barcelona e como tal, meus sentimentos não são baseados em razões, são simplesmente sentimentos ruins, uma torcida ao contrário (sempre torço pro barcelona, mas é para perder) e acho que todo torcedor de futebol é assim, em algum momento de sua vida. Sempre existirá aquele time pela qual sua antipatia é tão grande, que você passa a torcer pro time perder todos os jogos.

Eu era assim com o São Paulo quando era mais novo. No Ensino Fundamental II (do 6º ao 9º ano) estudei com vários são paulinos e todos eles eram pessoas detestáveis. Eu também nunca fui flor que se cheire, era meio metido, em parte, porque me achava superior aos meus colegas de classe devido aos meus conhecimentos avançados (enquanto meus colegas estavam preocupados com as festas de sábado, eu estava lendo Kafka) e em parte, porque eu era o garoto da capital morando no interior de São Paulo. Além disso tudo, era feio pra caramba, tinha gostos musicais horríveis (não para mim, mas para os outros, porque nunca gostei das músicas que tocam em rádio e afins) e nunca soube jogar futebol. Já eles eram bonitos, manjavam de futebol e basquete, eram altos e todas as garotas gostavam deles. Uma das formas que achei de vencê-los era torcer contra o time deles, o São Paulo, mas isso nunca deu muito certo.

Quanto ao barcelona, nunca fui muito de torcer pra times europeus e minha mentalidade derrotista sempre se afeiçoou mais com os times que estão por baixo, ou seja, desde que o barcelona se tornou o “rei” da Europa, com os melhores jogadores, praticamente a seleção da Espanha no time catalão minha antipatia começou a crescer. Ainda na Copa de 2010, quando a Espanha saiu vitoriosa e todo mundo falava que isso era graças ao barcelona, que montou uma categoria de base gloriosa e poderia fornecer a Espanha os melhores jogadores, minha antipatia pelo time catalão já estava formada.

No entanto, essa antipatia foi se solidificar em 2011, quando o maldito time catalão tirou o Mundial de Clubes da Fifa do meu querido time, o glorioso alvinegro praiano, o Santástico! Jamais esquecerei aquela manhã sombria, apesar de ensolarada, em que meu time foi humilhado em rede mundial no Japão, perdendo por 4 a zero e meu irmão dizendo “Ah, mas não ia ganhar mesmo!”.

Minha sorte era que eu nunca fui torcedor fanático, 2010 e 2011 tinham sido os anos em que mais havia acompanhado futebol até então e não era pra menos, o Santástico havia se consolidado como o melhor time daquela época, com Neymar, Elano, Ganso, André, Pará, Maikon Leite, Aranha, Edu Dracena, muitos em sua melhor fase. É o time que tem sua própria página na Wikipédia em inglês pra você ter noção. E pensando melhor, talvez fosse até melhor assim, o Santástico ter pedido, porque o sentimento de desolação que senti me fez ser um torcedor ainda mais racional e não um desses fanáticos malucos que choram pelo time.

Eu, graças a Deus, nunca chorei por time nenhum e fico muito feliz com isso. É essa racionalidade que me fez adorar o fatídico 7x1, mais por ficar deslumbrado com o futebol superior que a Alemanha apresentou do que por não gostar da Seleção Brasileira (mas isso é assunto pra outro post).

Ainda assim, aquele jogo, o 4x0 do barcelona em cima do Santástico consolidou minha antipatia pelo time catalão, enquanto que a crítica positiva ao time só se consolidou. É um nojo ouviu a narração da Globo dos jogos do barcelona, por exemplo. Eles nem escondem a sua torcida, chamam o Messi de gênio, glorificam cada passe do Neymar, exaltam o Suárez.

E quarta-feira não foi diferente, a narração estava um nojo, como sempre e eu sentia vergonha alheia a cada vez que o barcelona fazia um gol e dava pra sentir a criança de 10 anos sair dos narradores e invadir o microfone.

No entanto, isso não provocava meus nervos, não me deixou com raiva, porque no fundo, eu não tinha esperanças de que o PSG fosse ganhar aquele jogo, mesmo com uma vantagem de 4 gols. E isso é o que mantém meu haterismo saudável, é essa racionalidade, eu nunca vou ser torcedor do PSG, mas torcia pra ele sair vitorioso. Eu sei que o PSG é um time sem tradição alguma, enquanto o barcelona é um time com importância histórica, política e social, eles não são apenas o time da cidade barcelona, na UEFA eles representam uma nação, que busca até hoje sua independência da Espanha. Até nisso, ele é superior ao seu principal rival, o Real Madrid, isso eu reconheço, embora eu torça muito mais pro Real Madrid, não só nos clássicos Real X barça, mas também quando o time da capital espanhola enfrenta outros times da Europa.

No jogo de quarta eu sabia que as chances do PSG eram baixas, porque é um time fraco, é um time que não tem moral pra enfrentar o barcelona. E por pior que seja a situação do Messi fora do barça, na seleção argentina ele é um zé-ninguém, fora de campo é um esportista terrível, que não aceita um segundo lugar, que não sabe perder uma final. Por mais cretino que seja o Neymar, por mais descontrolado que o Suárez seja, por mais chato que o Piquet é, eles estão num time que joga sozinho, num time que não precisa de técnico, num time superior a maioria, num time que, quando perde, é um acontecimento que provoca um enorme estranhamento e com razão.

Ainda assim fiquei animado quando o PSG fez o primeiro gol. Quando o Dí Maria, que nem a pau é um jogador bom, ele é, no máximo mediano, admita, levou a bola até a grande área, eu segurei minha respiração e quase falei pra mim mesmo “se ele fizer o gol eu grito!” (só não falei, porque, no fundo, eu duvidava que ele ia marcar), mas quando ele errou, respeitei e pensei “não, esse time vai perder, é ruim demais!”.

Minhas esperanças só foram aumentar nos últimos 5 minutos e ainda assim saiu aquele gol incrível do Neymar e a atuação digna de Oscar de Suárez, que conseguiu convencer um juiz que estava armado contra ele, dando até um amarelo pro uruguaio mais lastimável da história recente do futebol.

Ainda assim, o jogo se aproximava do seu fim e teria sido bom para mim, não fossem os 5 minutos de acréscimo do juiz maldito. E o barcelona mostrou que 5 minutos é demais pra eles, é entregar o jogo pro time catalão e ganhou. Uma vitória histórica, um jogo belíssimo até pra quem entende pouco de futebol, mas entende que o que o barcelona fez é praticamente impossível, que aquele final de jogo foi eletrizante e que as estáticas provam, foi histórico.

Mas para um hater do barcelona, como eu, foi uma lástima. Não, eu não me enquadro no mesmo local que o cearense imbecil que chorou quando o PSG perdeu, eu não esperava a vitória do PSG, mas não esperava ter que admitir, mais uma vez que o barcelona é um time superior a muitos outros, que o barcelona é sim, um time fantástico.

E ainda assim, continuo sendo um hater, o barcelona pode ser superior, o Messi pode ser um gênio, o Neymar pode ser o melhor jogador brasileiro desta década, o Suárez pode ser incrível, mas eu continuo sendo um hater, o pênalti foi sim mal marcado, foi uma vitória grandiosa, mas com um asterisco, o Messi continua não sabendo perder, o Neymar continua sendo um cretino, o Suarez continua sendo um descontrolado e no meu ranking pessoal, no meu orgulho de torcedor, o Santástico continua sendo e vai continuar a ser, o melhor de todos, todos, TODOS e isso não é racional, é completamente passional, como toda opinião de hater deve ser.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Dica musical: "Drunk" de Thundercat

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Após 4 anos, Thundercat, um dos músicos mais virtuosos dessa onda de artistas que ficam na linha tênue que separa o jazz do hip hop vindos do sul da Califórnia (a fim de comparação, fica aí alguns nomes: Kamasi Washington, Kendrick Lamar e Flying Lotus), volta com mais um álbum que não decepciona e até surpreende.

Eu tinha um pouco de receio com relação a esse álbum, pois não gosto muito dos outros álbuns de estúdio do baixista. “The Golden Age of Apocalypse” (2011) e “Apocalypse” (2013) não ficam apenas na linha tênue entre jazz e hip hop, mas também entre a música eletrônica. O jazz é muito distorcido e Thundercat se esforça em mostrar o quão virtuoso ele é no baixo, cometendo o mesmo “erro” que muitos roqueiros cometem que é esquecer a melodia e se concentrar na técnica. O mesmo não aconteceu em “The Beyond/Where The Giants Roam” (2015), um EP que apresenta 6 músicas com melodias soturnas, porém encantadoras, aliando a técnica com a criatividade musical.

E dois anos após o EP, Thundercat mostra que ele aprendeu muito mais. “Drunk” é um épico de 23 músicas, a maioria tendo algo em torno dos 2 minutos, sendo a mais longa de 4 minutos e várias de apenas alguns segundos, servindo como transições entre as histórias que Thundercat quer contar, mas chegaremos lá mais tarde.

Há uma grande presença de elementos eletrônicos, o baixo continua fortemente distorcido, mas o álbum não chega mais próximo da música eletrônica do que um álbum de fusion do Herbie Hancock. Há uma grande presença de melodias vindas diretamente do funk e do soul, além dos próprios vocais distorcidos de Thundercat (expansivos, suaves e agudos) reforçando diretamente essa influência musical. Em todas as canções, o baixo é o instrumento principal, dando não apenas o ritmo, mas a atmosfera às canções, seu virtuosismo ainda está presente, mas há uma concentração maior em manter a melodia, criando músicas mais sólidas.

Muitas canções são instrumentais, mas outras tantas contém letras que exploram diversos temas, de drogas a ser friendzoneado, com um senso de humor sagaz e non-sense, mesmo os temas mais pesados acabam provocando uma risada no ouvinte/leitor. A forma como esses temas são explorados, além do senso de humor tão único de Thundercat, acabam dando às letras a sensação de se tratar de um diário, mas o tamanho do álbum (são 23 músicas), com suas transições e os diferentes elementos musicais revelam algo um pouco mais profundo. O álbum pode ser encarado como uma zapeada noturna por uma porrada de canais de TV e conforme a noite vai avançando, as letras, as melodias e os elementos musicais vão ficando mais obscuros, melancólicos e claustrofóbicos.

O álbum começa de maneira fácil de ser encarado (a primeira música tem 38 segundos, a segunda pouco mais de 1 minutos e a terceira mais de 2), mas após a primeira transição os elementos se misturam cada vez mais, transformando o álbum numa obra de jazz fusion com letras bizarras, engraçadas e com um pano de fundo bem obscuro, até que há mais uma transição e o álbum vai ficando mais lento, vagaroso e pesado, culminando numa canção confusa, acompanhada de uma melodia desoladora, com uma última nota de baixo tão distorcida que te faz sentir como se estivesse perdido no espaço. “Them Changes”, a melhor música do EP lançado em 2015, aparece perdida no meio do álbum e só reforça essa ideia de busca por uma atração, dissolução entre diversos temas, referências e elementos musicais.

É um álbum impressionante, com um pano de fundo ainda mais impressionante. Há ainda uma porrada de participações especiais e muitas delas melhoram as canções onde são apresentadas (como Kendrick Lamar em “Walk On By”), mas outras só servem pra atrapalhar (Wiz Kalifa, claro...), porém isso não diminui de todo o valor do álbum.

Enfim, “Drunk” de Thundercat é um projeto ousado e o baixista consegue segurar as pontas e aproximar extremos musicais com seu virtuosismo e criatividade. Vale a pena escutar, se não pelo jazz fusion, mas pelas letras sagazes.

4 pontos

quinta-feira, 2 de março de 2017

Dica Cinematográfica: "Hacksaw Ridge" (2016)

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Rapaz, ainda bem que eu não sou crítico de cinema membro da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles, porque não gostaria de escolher entre “La La Land” e essa obra magnífica da qual falarei hoje.

“Hacksaw Ridge” conta a história verídica de Desmond Doss, membro da 77 ª Divisão de Infantaria e também o primeiro objetor de consciência a receber a Medalha de Honra na II Guerra Mundial, quando salvou, sozinho e desarmado, 75 homens na Batalha de Okinawa. Aliás, o filme começa já pelo final, com os parceiros de Doss retirando-o numa maca do campo de batalha e então, através de um extenso flashback, somos apresentados aos eventos mais importantes de sua infância e juventude, que o fizeram se tornar ainda mais devoto a Deus e, em especial, ao sexto mandamento; “Não matarás”. Desmond sempre esteve encantado pela profissão médica, tanto que acaba se apaixonando por um enfermeira, Dorothy Schutte. Após o alistamento de seu irmão mais velho, Doss, mesmo contrariando a vontade de sua família e de sua namorada, alista-se também, almejando tornar-se um socorrista. O único problema é que, mesmo os socorristas, são soldados e ele sofre muito quando começa o treinamento, pois recusa-se a pegar numa arma. No entanto, sua força de vontade, seus contatos e seu bom desempenho físico lhe garantem um lugar na guerra, onde Doss acaba fazendo história.

Desde os primeiros momentos, sabemos que esse será um filme de drama épico do tipo que lhe fará chorar e “Hacksaw Ridge” não deixa nada a dever aos maiores clássicos de guerra que existem. De “Sem novidade no front” a “Cartas de Iwo Jima”, passando por “O resgate do soldado Ryan”, “Nascido para matar”, “Vá e veja” e “Paisá”, esse filme não deve nada a eles. Há um subtexto poderoso, cenas brutais, uma dramaticidade enorme em cada cena (até mesmo a câmera lenta foi bem utilizada nesse filme) e, claro, aquele final com fundo preto, filmagens antigas e um textinho resumindo a vida de Desmond Doss até o final de seus dias.

A direção nesse filme foi muito bem feita e o crédito tem que ir pro Mel Gibson (inclusive, quando o filme acabou, eu fiquei indignado por ter que admitir que o Mel Gibson me fez chorar assistindo um filme!) e sua equipe de produção. Todos os elementos estão em perfeita harmonia nesse filme, os efeitos sonoros, a trilha sonora, a posição das câmeras, sua movimentação, é um filme com uma direção não apenas competente, mas surpreendente, pois algumas cenas (como a que Desmond contesta junto de sua mulher sua posição perante seus colegas de treinamento, enquanto preso ou ainda a cena em que ele contesta seu lugar na guerra e a fantástica cena final em que ele é descido da serra de Hacksaw numa maca) são tão carregadas de simbolismo, que você tem vontade de parar o filme nesses momentos só para poder analisar com calma e friamente o que aquelas imagens significam.

Vou te falar, é um filme poderoso.

Além disso, ainda temos atuações surpreendentes de atores como Andrew Garfield, que mais uma vez consegue carregar naquelas costas magrelas dele todo o peso de um papel dramático como esse (ele já o fez isso em “Silêncio”) e também de Teresa Palmer, Hugo Weaving e Vince Vaughn (a maior surpresa).

O filme não é perfeito, apresentando algumas coisas que incomodam, mas passam batido, visto sua magnitude, como as transições entre os períodos da vida de Doss e a precisão histórica (ou falta dela) em alguns momentos, como no retrato do pai de Desmond, as circunstâncias de seu casamento e a própria batalha de Okinawa, que não foi a primeira em que Desmond participou e nem durou apenas alguns dias, mas semanas. Tudo isso cai na caixa de licença poética, porque se não o filme seria enfadonho demais e seria melhor gravar uma série, o que também não é má ideia.

Enfim, “Hacksaw Ridge” é um primor de um filme, ouso dizer uma obra prima, entra fácil na lista de maiores clássicos de guerra da história, tem um subtexto incrível e, apesar dos seus defeitos (e são poucos, é coisa boba!), deveria ter sido escolha difícil para os engomadinhos da Academia que ficaram entre “La La Land” e aquele lixo do “moonlight”, mas fazer o que, né? O que importa é que daqui uns 50 anos, as pessoas irão olhar pra trás e ver “Hacksaw Ridge” e irão chorar, porque o filme é excelente, de verdade.

4 pontos e meio