quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Dica literária: “Luz em Agosto” (1932)

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A dica de hoje é de mais um livro de William Faulkner, o autor que mais me fascinou desde Salinger.

Em “Luz em Agosto” conhecemos Lena Grove, uma jovem moça grávida que sai do Alabama em busca do pai de sua criança (Lucas Burch) e acaba chegando em Jefferson, condado de Yoknapatawpha, Mississipi, onde Lucas chegou para trabalhar sob o nome de Joe Brown e morava com um certo Joe Christmas, que, na noite em que Lena chega na cidade e encanta Byron Bunch, mata Joanna Burden, uma velha conhecida da cidade, mas que ninguém conhecia de fato e bota fogo na casa onde a mulher morava. Unindo todos esses personagens, encontra-se Gail Hightower, um ex-ministro da cidade, cuja vida sofrida o levou a ter uma perspectiva sombria da natureza humana, mas a quem Byron não consegue deixar de se relacionar, pois o acha um homem sábio e abençoado.

É difícil criar uma sinopse que envolva todos os personagens num só parágrafo. De fato seria mais fácil separar tudo por tópicos, mas se fosse assim não seria uma sinopse digna de um livro do Faulkner. Muito mais difícil é falar de todos os temas que envolvem esse livro, de forma que te deixe com vontade de lê-lo e, para tanto, irei topicalizar essa dica.

Pra começar, “Luz em Agosto” é um primor estético. Lendo essa obra eu realmente consegui entender o que Harold Bloom quer dizer por “estética” em literatura. É fácil entender sobre o que falamos quando falamos em “estética” quanto a literatura quando lemos poesia, pois os versos são feitos de forma que consigamos criar um ritmo em nossa mente, uma imagem, etc...; mas quanto a prosa? É difícil entender, mas “Luz em Agosto” é um exemplo maravilhoso para entender isso.

Cada um dos capítulos existe em si só, parecendo até contos, ao menos nos seus primeiros parágrafos, mas logo somos jogados dentro da história e lembrados dos personagens e da relação que cada um deles tem entre si. Pensamentos, falas e memórias existem de forma intercalada e para isso Faulkner usa aspas, aspa única e itálico indicando o fluxo das conversas, tanto externas quanto internas.

Então, ao adentrar esse universo que Faulkner cria para esse livro, ficamos com a sensação de estar vendo uma obra de arte se abrir na nossa frente. Nunca antes achei que pudesse usar de forma tão natural o adjetivo “bonito” para um texto. É um texto bonito de verdade e eu nem estou falando do conteúdo ainda.

Mas é porque é bonito que é fácil, muito pelo contrário, é difícil. Como eu já disse, cada capítulo parece existir por si só, muitas vezes, só depois de várias páginas é que você percebe quem são os personagens principais daquele capítulo. É difícil acompanhar o fluxo do tempo, pois Faulkner era um aderente da teoria do tempo de Bergman (la durée), que dizia que todo indivíduo é uma soma de tudo que existiu antes dele. Para Bergson, o passado e o presente existem ao mesmo tempo e a duração da vida do homem é inefável, podendo apenas ser vislumbrada indiretamente pela imaginação. No texto, Faulkner nos apresenta o passado de seus personagens junto ao presente e nem sempre conseguimos diferenciar isso de primeira.

Dá trabalho, mas vale a pena se esforçar para acompanhar e ao contrário de outras obras difíceis (como o próprio “O Som e a Fúria”), você não tem que estar no estado de espírito correto para compreender a obra, ela só exige esforço e atenção mesmo, por que, ao contrário de outras obras, “Luz em Agosto” nos apresenta uma história linear, com diversas divagações narrativas e espaços para meditações sobre a natureza humana, mas há uma história, com início, clímax e conclusão e que belo clímax nos encontramos nessa obra.

Aqui, vale mais elogios à atenção estética que Faulkner dá a sua obra, pois a imagem que ele cria num dos clímaxes da história (sim, há mais de um!) é simplesmente fantástica, uma imagem que parece ter saído do mais lindamente filmado western spaghetti da história, mas no século 20, no sul dos EUA e sem a trilha sonora épica. Aliás, se fosse filmado, seria uma cena apenas com os efeitos sonoros do ambiente.

E o segundo clímax é uma cena de perseguição que começa com a apresentação de um personagem que nunca foi mencionado no livro antes, mas em poucos parágrafos ficamos tão familiarizados com ele que não nos surpreendemos com sua atitude final, tão violenta e tratada de forma tão sutil que você tem que ler várias vezes. No meio há ainda uma cena de perseguição brilhante, que faria qualquer autor de livros policiais ficar de queixo caído.

As idas e vindas no tempo criam uma noção circular de história que coloca o homem como centro de suas vidas, temos o livre-arbítrio para isso, afinal e as ações dos personagens principais, Lena e Christmas são postas em cheque, cada uma gerando consequências condizentes com a vida que levam. A dualidade gerada com a história dos dois gera no final uma lição de moral que irá te fazer olhar para o céu ao final da leitura e ter a impressão de que o dia ficou mais bonito, de repente.

Não é apenas na estética que o livro é bonito, mas também na conclusão de sua história, que abre espaço para diferentes interpretações, mas o cerne é bem definido em torno do velho ditado “você colhe o que planta”. Faulkner nos diz, assim como muitos santos e filósofos antes dele, que nós somos o que construímos e construímos através de ações, sejam elas positivas ou negativas e suas origens não tem nada a ver com isso (lembra que você é o capitão da sua vida?).

Além disso, ainda poderíamos falar das questões de isolamento social, a ferida do racismo (que é tocada aqui de tal forma que ofende não apenas racistas esclarecidos da KKK como também os racistas enrustidos que defendem cotas em faculdade), a alegoria cristã (que acho um pouco de forçação de barra, mas até que faz sentido) e a relação entre indivíduo e sociedade, mas isso acabaria entregando muita coisa e eu só daria spoiler, portanto, vou encerrar por aqui.

Eu só tenho elogios para essa obra, que eu li em inglês e o único comentário que posso fazer que se aproxima de apontar um defeito é o fato de Faulkner se daqueles autores que sabem dar voz aos seus personagens e pelo fato da obra se passar no sul dos EUA, ao ler no original você vai se deparar com uma série de “erros” ortográficos, mas que ao serem pronunciados fazem todo sentido, como “de” ao invés de “the”. O problema é que no meio do livro, você corre o risco de adquirir alguns vícios de linguagem e sair falando por aí que nem um habitante de Jefferson.

Não sei como é a tradução, aliás, não sei como é nenhuma tradução de Faulkner ainda. Tenho que folhear algum livro na biblioteca da faculdade ou numa livraria qualquer ainda.

Enfim, elogios em cima de elogios, é um dos melhores livros que li na vida.

5 pontos