quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Dica literária: "Eneida"


 Tomei vergonha na cara e finalmente peguei esse tijolão que estava na minha estante há muito tempo para desembalar, ler e Deus me perdoe, mas esse é o poema épico que eu mais gostei, gostei até mais do que A Divina Comédia.

Eneida é o clássico romano que conta a aventura de Eneias, guerreiro troiano, após a Guerra de Troia e sua queda em direção à Itália, onde ele acabará por fundar Roma. Não ele especificamente, mas seus descendentes, os quais por sua vez são descendentes de troianos, por consequência.

O livro foi escrito por Virgílio e, pra quem não se lembra, é o poeta que guiou Dante pelo Inferno e o Purgatório n'A Divina Comédia e a obra é, de fato, fenomenal. Acompanhamos de forma clara e concisa a trajetória de Eneias que se arrasta por anos, indo de Troia até a Itália, passando pelo Norte da África, ilhas no Mediterrâneo e fundando cidades enquanto isso. 

Ao contrário de seus irmãos de gênero poético, Eneias não é apresentado apenas como um guerreiro ou um valoroso pai de família, mas como um verdadeiro religioso e, como tal, é o responsável por fundar a civilização. Eneias tem uma fé cega em sua missão dada pelas divindades de fundar uma cidade e continuar o reino de Troia e esse é o motor de toda a sua vida pós-guerra de Troia, deixando, inclusive, uma vida feliz que poderia ter vivendo no norte da África.

E é essa sua fé que funciona como o motor para a narrativa, pois não apenas é através dela que é realizada a sua trajetória, como é também no embate divino que ela se concretiza. Isso se dá não apenas de maneira negativa, com os desafios divinos impostos ao troiano, como também de maneira positiva, através das inúmeras bençãos que ele vai recebendo.

É interessante que isso poderia causar no leitor incauto a sensação de que Eneias é um verdadeiro bundão, mas não é isso o que acontece. Eneias é um homem belo, que impressiona pela beleza e também pela sua força de vontade que guia os troianos até o novo império. Mas é na segunda metade do livro que conhecemos o Eneias guerreiro que aparece na Ilíada, liderando um exército contra a força das cidades italianas e enfim começa a verdadeira chacina.

E ainda assim, Virgílio nos apresenta um Eneias justo. Ele mata seus adversários, mas nunca é de maneira gratuita, pelo contrário, ele o faz com grande justiça e essa também é uma de suas principais características. E também não poderia ser diferente, pois para a mente pagã a figura religiosa é também a figura jurídica. Não há diferença entre religião e política e por isso Eneias funda suas cidades com sacrifícios animais e também chora em êxtase ao encontrar a vontade divina de seus deuses.

É um livro extremamente profundo, como todos os épicos, creio eu, mas a edição em português da editora 34 a qual tive acesso nos apresenta sua profundidade de maneira ainda mais impressionante, pois a tradução de Carlos Alberto Nunes tenta manter o verso hexâmetro no qual o épico foi escrito. E o faz de maneira magistral. Obviamente que eu, um mero leitor brasileiro, não saberia dizer qual a grandiosidade desse feito de tradução sublime se não fosse pela introdução de João Angelo de Oliva Neto, a qual eu li antes de começar a me aventurar pela Eneida e só aumentou ainda mais a minha atenção para essa obra fenomenal.

A referida edição ainda é bilingue, contando com os versos originais em latim, o que acrescenta uma camada ainda maior para os que gostam de se aventurar pela nossa tão bela língua de origem.