terça-feira, 17 de outubro de 2017

Dica literária: "A divina comédia" de Dante Alighieri (1304-1321)

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As aulas de latim que tive ano passado foram bem inúteis, não entendo porque tive que aprender essa língua sendo que nunca mais usei-a durante o meu curso e, provavelmente nunca mais a usarei. No entanto, nem de longe elas são tão inúteis quanto linguística, que sequer é uma ciência, pois, ao menos, as aulas de latim serviram para que eu pudesse me interessar pela cultura clássica e por causa do meu interesse em cultura clássica (e também pelo meu interesse quanto a língua italiana), que eu decidi ler esse livro.

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“A divina comédia” é um poema épico que conta a trajetória de Dante pelos “reinos de além-vida”, ou seja, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Motivado por Beatriz, sua musa inspiradora e grande paixão de sua vida, Dante inicia sua viagem ao encontrar-se com Virgílio, enviado pela própria Beatriz, no Limbo (para onde Beatriz não pode descer, pois ela se encontra no Paraíso). A partir do Limbo, onde se encontram as almas daqueles que não conheceram o Cristianismo, Dante e Virgílio entram no Inferno, que nada mais é que uma enorme cratera formada a partir da queda de Lúcifer do Paraíso. Dante atravessa os 9 círculos do Inferno, encontrando pessoas reais e ficcionais mitológicas pagando após a morte os pecados que cometeram. Após o encontro com Lúcifer, eles entram no Purgatório e seus 6 círculos, onde são punidos aqueles que não resistiram aos 7 pecados capitais e aguardam para poder adentrar os portões celestiais. No final do Purgatório, Dante se despede de Virgílio (que não pode entrar no Paraíso por ter sido um pagão em vida) e adentra o Paraíso ao lado de Beatriz, que também o guia pelos 9 círculos do Paraíso até o Empírio, a morada de Deus e todos os Abençoados.

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Esta é uma daquelas obras que de tanto ouvirmos falar, achamos que conhecemos, mas quando a encaramos de verdade, percebemos que não conhecemos nada! Sendo um millenial a minha referência principal para “A divina comédia” é, lamentavelmente, a camiseta do Nirvana com os círculos do Inferno. Portanto foi uma surpresa para mim ler esse poema épico fantástico, a começar pela sua estrutura, baseando-se, inteiramente, no simbolismo do número 3, representando a Santíssima Trindade. O poema é composto por tercetos que seguem um esquema de rimas ABA, BCB, CDC, DCD e assim por diante, chamado de terza rima. O poema constitui-se de 3 livros: Inferno, Purgatório e Paraíso, cada um com 33 cantos (exceto o Inferno, que contém um canto a mais para introdução, mas ele não conta, de fato). Cada uma das localidades exploradas por Dante contém 9 círculos (o Purgatório tem 6 círculos para punição, mais 2 ante-purgatórios e o seu topo, o paraíso terrestre), o que totalizam 27 círculos, que por si só é o número 3 elevado a terceira potência.

Tamanha genialidade só pode ter vindo de inspiração divina mesmo.

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A viagem de Dante é marcada pelo forte debate filosófico e teológico, recheado de personagens históricos ou mitológicos, que tem uma funcionalidade alegórica dentro do poema, explorando ideias, conceitos, atos e julgamentos, enfim... é uma obra para se tomar como um guia espiritual.

Há ainda no livro diversos momentos em que Dante toma para si nomes (de lugares, principalmente), criando uma mitologia própria, como no momento em que ele está para entrar no Paraíso e se banha no Letes para deixar para trás os seus pecados. Pode não parecer muita coisa analisando-se friamente, mas quando se está lendo e experienciando a obra em primeira mão, é um deleite criativo.

A obra é tão bem escrita e imersiva que o Inferno é capaz de transmitir aquele sentimento de horror que nos faz querer virar santos em vida só para evita-lo. A descrição de Lúcifer foge de tudo que a cultura pop nos faz engolir, mas é tão assustadora quanto deve ser. O Purgatório é um momento de tranquilidade e paz, face a esperança de poder sair de lá, enquanto que o Paraíso, ao menos para mim, foi uma experiência agridoce. Eu tenho medo da morte, não porque tenho medo da dor ou porque vou deixar projetos inacabados, mas porque eu tenho um certo pavor do que virá a seguir. A ideia de vida eterna sempre me deu um pouco de desespero pelo seu teor estacionário e utópico. Ideias como a de “felicidade tão grande que você nem irá notar se a pessoa que amou em vida está ou não do seu lado” me dão pavor, por isso as descrições do Paraíso e sua bem-aventurança acabaram me deixando um pouco apavorado, mas ao final da obra, quando Dante conhece a Verdade Absoluta e uma beleza tão grande que é impossível descrever, eu me senti em paz também. “A divina comédia” tem esse poder.

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A edição que eu tenho é da editora 34, é bilíngue e apresenta tradução de Italo Eugênio Mauro, que só traduziu essa obra, mas a traduziu tão bem que ele deve ter um lugar especial no Paraíso ao lado do poeta florentino. Não tem ilustrações, mas eu acho que isso é ainda melhor, embora as descrições do Paraíso não sejam tão claras e completas quanto nos outros lugares, é melhor ficar sem ilustrações mesmo para que possamos admirar a viagem de Dante apenas em nossas ideias, de forma meio que platônica. Sem contar que nenhum ilustração faz jus de fato à grandeza desse poema.

Conversando com colegas, a maioria diz que “A divina comédia” é o melhor poema épico que leram e eu concordo com eles, embora vá um passo além e diga que essa obra só é o que é por pura e simples inspiração divina. Dante foi abençoado ao escrever “A divina comédia”, é o que acredito.

5 pontos