quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Dica literária: "O Mestre e Margarida" de Mikhail Bulgákov (1967)

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O trabalho da vida de um escritor e dramaturgo ucraniano contrarrevolucionário, seguindo os passos do mestre Goethe, inspirado pelo Fausto e por uma vida desgostosa com o regimo stalinista, esse é O Mestre e Margarida, clássico de Bulgákov, que li no final do ano passado e inicio desse ano como parte do meu projeto de vida de leitura de clássicos russos no final de todo ano.

No entanto, já chegamos numa discussão complicado. Bulgákov era ucraniano, mas na época sua cidade natal, Kiev, fazia parte da União Soviética, portanto foi abraçado pela nação russa e passa despercebido por muita gente como um escritor russo, seu maior livro aparece em lista de muitas clássicos russos, mas a confusão é problemática e uma visita ao memorial ucraniano em Curitiba é o suficiente para explicitar isso.

Mas vamos ao que interessa: o livro conta as desventuras de Satã na capital da Rússia sob o regime soviético. Ele encontra com pessoas da alta classe artística de Moscou, sua identidade passando despercebida pela maioria das pessoas, mas deixando os mais sensíveis loucos, literalmente.

A obra é recheada de passagens irônicas, que marcam uma crítica mordaz a sociedade soviética, criada de maneira totalitária após a revolução russa. Para começar, iniciamos o livro com uma hilária discussão entre dois ateus com o diabo, o que nos leva para um livro dentro do livro, que nos conta a trajetória de Poncio Pilatos. Aos poucos, a história vai se desenrolando e ficamos sabendo que a sociedade artística de Moscou convidou o diabo para se apresentar a eles, Satã tem curiosidade na obra do Mestre, que conta a história de Poncio Pilatos e seu secto diabólico (formados por demônios travestidos de homens e gato) vai envolvendo Moscou em loucura e desespero.

O livro é um belo exemplo do realismo fantástico. No começo somos apresentados a realidade moscovita simples da primeira metade do século 20, mas logo as coisas fantásticas vão acontecendo, inicialmente as mortes, mas logo após passagens mais simbólicas e bizarras mesmo, que te deixam confuso e me fizeram meditar um pouco sobre isso.

Em longas discussões com minha namorada, minhas opiniões federalistas são sempre contrastadas com a "bagunça que isso iria gerar", até mesmo o maior exemplo político mundo atual, a Suíça, foi vítima dessa afirmação. Acontece que para mim é muito fácil abraçar essa bagunça, esse caos e a mesma coisa vale para a arte. O Mestre e Margarida é um livro que irá te deixar no escuro em muitas passagens e em diversos você terá que balançar os ombros e se deixar levar pela obra.

E ao se deixar levar, você irá notar que as pontas começam a se ligar, mas nem tanto, até porque a segunda parte não foi extensamente revisada como a primeira parte e isso é notável. Ainda assim, é um livro muito engraçado e muito divertido, o realismo fantástico contribui para isso.

Realismo fantástico que contrasta com o realismo socialismo, o qual o mestre é sua antítese. Não faltam críticas sutis ao regime soviético, desde simbolismos presentes nos nomes, como Ivan, o ateu que enlouquece logo nas primeiras páginas do livro e escreve um poema anti-cristão; até mesmo até os elementos soviéticos que podem passar despercebidos, como a cena onde o "gerente" do teatro tem que passar por diversos setores públicos para depositar o dinheiro que ganhou com as vendas de ingresso do teatro.

Bulgákov era extremamente descontente com a revolução russa e nunca escondeu isso, chegando a pedir pra sair do país e queimar o manuscrito deste livro, que ele sabia que jamais seria publicado em seu tempo. De fato não foi e foi publicado antes fora da Rússia comunista. De suas páginas, por baixo da sátira, encontramos uma crítica a uma realidade ímpar, mas que encontra paralelos ainda hoje, como as elites artísticas que abraçam discursos igualitários na superfície, mas totalitários na essência.

De toda forma, esse tipo de discussão é feita pós-leitura, pelo menos na minha visão. Enquanto se lê O Mestre e Margarida o melhor é se deixar levar pelos elementos fantásticos e o Satã de Bulgákov, que melhor personifica o elemento caótica que serve à Ordem.

Ótimo leitura pra começar 2020 com tudo.