quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Crônica: Gabriela e Paola discutem aborto

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Quando, após o almoço, Paola ouviu o repórter anunciar na TV que ministros do STF absolveram um médico que realizava operações abortivas em sua clínica no Rio de Janeiro, entendendo que até o 3º mês, o ato não seria crime, a menina ficou eufórica. Sendo uma, autonomeada feminista, achou isso um ato de extrema humanidade, um grande passo para as mulheres do país e já havia entrado em calorosas discussões com sua mãe sobre o assunto. Morando numa cidade pequena como aquelas, suas opiniões acerca do tema já haviam sido espalhadas para todos os bairros, praças, casas e ruas estreitas. Paola mal podia esperar para ir à escola naquela tarde e você podia entender pelas suas passadas apressadas no corredor em direção à pequena biblioteca do segundo andar, onde ela iria encontrar Gabi, a sua melhor amiga naquele atarefado, porém jubiloso, 2º ano do colegial.

A chuva do lado de fora, culpada por fazer o princípio da tarde parecer um final escuro de tarde, era a causa do sono que Gabi sentia, curvada sobre uma mesa de estudos, tentando tirar um cochilo, pensando qual a melhor forma de adjetivar uma figura de linguagem impessoal e se isso lhe valeria alguns pontos a menos quando entregasse sua redação na próxima aula.

“Você ouviu?”, perguntou Paola para a amiga, assim que entrou na biblioteca. Não havia mais ninguém ali, por isso ela podia fazer barulho como se estivesse em casa, só que não fazia, porque não estava em casa, estava na escola.

“O quê?”, indagou Gabriela levantando o rosto da carteira e jogando seu cabelo para um lado da cabeça.

“A notícia sobre aborto!”

“Ah, sim...”, respondeu Gabi, debruçando-se novamente sobre a mesa.

“E aí? Demais, né?”, inquiriu Paola, sentando numa carteira à frente da amiga.

“Por que seria?” foi a resposta de Gabi.

“Por que seria?”, repetiu Paola “Ora, porque é importante. Pode ser o primeiro passo para legalizarem o aborto finalmente.”

“Ele já é legalizado.”

“Não é não. Se você ficar grávida não pode abortar.”

“É legalizado em todos os casos necessários, se é uma gravidez fruto de estupro, se o bebê ou a mãe correm risco de vida ou se o bebê é deficiente.”

“Anencéfalo.”

“O quê?”

“Se o bebê é anencéfalo.”

“Continua deficiente.”

“A questão é que não é legalizado, ele é ilegal, exceto esses casos.”

“E além desses casos, porque você quer abortar? Pura vaidade?”

“Eu não quero abortar, eu quero apenas ter a escolha de abortar!”

“Por que ter a escolha se você não vai usar?”

“Eu posso não usar, mas alguém vai!”

“E essa alguém vai usar por quê? Por pura vaidade?”

“Qual o problema com a vaidade? Deixa as pessoas serem vaidosas, é problema delas!”

“Até o ponto em que elas prejudicam outra pessoa.”

“E como elas poderiam prejudicar outra pessoa nessa questão, hein?”

“Vão estar matando alguém.”

“Ah, por favor, o bebê nem tem consciência até os 3 meses de vida!”

“Mas vai ter.”

“Só se ele se desenvolver além dos três meses.”

“Você não pode pensar assim, não é porque ele não desenvolveu consciência que ele não é um ser humano. O processo que antecede o desenvolvimento da consciência é parte da construção da consciência, é claro que não ele não tem consciência até os 3 meses, ele não tem nem cérebro, mas o seu corpo está sendo construído para que se tenha um cérebro. As células do cérebro (e, por consequência, da consciência) já estão ali, crescendo.”

“Isso é besteira!”

“Nenhum médico vai negar o que eu disse.”

“Por que obrigar uma mulher a cuidar de um filho que ela não quer?”

“Ninguém é obrigado a nada.”

Você tá falando do quê? Adoção? É ridículo! A maioria das crianças vão pra orfanatos ou pra lares abusivos!”

“Isso é uma falácia! Sobre os lares abusivos, eles não são a maioria, não tem nem como ser. É ridículo pensar assim. E depois, se você legalizar o aborto, as crianças vão continuar indo para os orfanatos. Esse é outro problema, muito mais urgente, inclusive.”

“Mais urgente? Qualé, Gabi, estamos falando do seu direito de escolha!”

“Que escolha? Não é escolha se só te é oferecido uma opção.”

“As pessoas têm várias opções, inclusive de não engravidar, mas se engravidar, pode ter o poder de escolher abortar!”

“Você sabe que não é assim. Nós temos escolhas, mas nós temos uma biblioteca no nosso colégio particular, nós temos um pai e uma mãe em casa nos esperando, nós temos celulares de última geração...”

“Aonde você quer chegar com isso?”

“Eu quero chegar ao ponto em que você diz que os países mais desenvolvidos do mundo legalizaram o aborto.”

“E legalizaram!”

“Mas as mulheres que mais abortam nesses países são pobres, porque as mulheres ricas tem outras opções que não abortar.”

“Pelo menos elas não estão morrendo em clínicas clandestinas.”

“Mais uma vez isso é outro problema, não é preciso legalizar o aborto pra resolver isso. De certa forma, eu sou pró-escolha também, mas as boas escolhas.”

O sinal tocou e as duas pararam de conversar. Haviam duas aulas de matemática e duas de Literatura para terminarem a tarde e logo sentiram um grande cansaço, não só da discussão que tiveram, mas também do que teriam que encarar nas próximas horas. Do lado de fora, a chuva ainda caía, mas com menor intensidade.