terça-feira, 11 de agosto de 2020

Uma nova civilização está nascendo

Homo sum nihil humani a me alienum puto

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Estou maratonando a série Civilisation, que estava devendo há muito tempo e logo, logo deve virar um post aqui no blog. Mas eis que, no episódio 6, Protest and Communication, Kenneth Clark nos apresenta uma situação que muito se equipara aos problemas sociais vivenciados por habitantes do hemisfério ocidental em plano ano da desgraça 2020.

Neste episódio, Kenneth Clark abandona as calorosas terras italianas para tratar da cultura que começava a ganhar força e impulso no norte da Europa e iria mudar a civilização para sempre, através de três personagens principais: Erasmo de Roterdã, Albrecht Dürer e Martinho Lutero.

Como já sabemos pelas lições de história, Erasmo de Roterdã, com suas críticas às instituições de sua época foi um grande influenciador das ideias do revolucionário Martinho Lutero, que rompeu com a Igreja Católica, criando as inúmeras vertentes do cristianismo que vemos até hoje. Dürer foi o artista principal dessa história, na visão de Kenneth Clark. Foi através de Dürer que o mundo pode visualizar como se deu essa história toda, ilustrando o espírito que dominava o norte nessa época.

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Um espírito imponente, voltado ao estudo das letras e não a admiração de imagens, como aconteceu na Itália renascentista, um espírito livre. Não é a toa que Dürer fez um auto-retrato que parecia uma paródia de Jesus Cristo, como se o artista fosse Deus. Algo impensável na época, mas não para o espírito livre, ousado e contestador do povo do norte europeu.

E foi através desse espírito, impulsionado por tais homens ilustres, que a Reforma Protestante aconteceu e com elas as revoluções que acabaram culminando nas Guerras Religiosas. No entanto, um passo antes desse triste fim, algo interessante ocorreu: sendo uma revolução puramente popular, seus manifestantes não se preocupavam com as demonstrações artísticas católicas, não sabendo diferente o valor exterior de seu conteúdo, realizando assim a destruição de imagens

A história parece se repetir, não é?

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Vemos hoje em dia manifestações puramente populares, derrubando as manifestações artísticas que compõem parte da nossa civilização, pois nos aproximam da história, quer goste você ou não.

H.G. Wells em sua extensa obra The Outline of History separou as civilizações em dois tipos: as civilizações de ordem, que deram origem de fato às civilizações, no Egito e Mesopotâmia e as civilizações de vontade, marcadas pelos povos nômades, notadamente os povos do norte da Europa, os bárbaros que os romanos temiam.

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É isso que ocorreu na época de Erasmo, Dürer e Lutero, o embate desses dois tipos de civilizações e o resultado é sempre o mesmo, as civilizações de vontade acabam imperando. Não tem como contornar isso. É uma luta desigual, onde um lado atua através da lei, da temperança e do diálogo e o outro lado atua através da ferocidade, da violência desenfreada e do caos. Um lado quer manter a estagnações ordeira, o outro almeja a destruição das bases civilizações, pois as enxerga como puramente malignas.

É interessante que o próprio Erasmo escreveu, ao ver um grupo de protestantes sair de uma reunião, que os via como que carregando um espírito maligno. O primeiro expoente do protestantismo mesmo viu com horror as consequências de seus questionamentos, os quais deveriam ser muito justos, mas encontraram uma revolução turbulenta com resultados insatisfatórios, como sempre ocorre.

No final, Kenneth Clark nos pergunta, qual papel poderia ter uma mente esclarecida e maneirada numa sociedade em ebulição? A de reclusão, obviamente e aí somos apresentados ao grande Michel de Montaigne, que apesar de ter perambulado por toda a Europa e frequentado os círculos mais importantes de sua época, decidiu viver a vida toda recluso nas terras de sua família, isolado em seu castelo.

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Numa sociedade em ebulição, aos boas mentes não encontram espaço para falar e é exatamente isso que vemos hoje em dia. Ou você é um completo radical de um lado ou de outro, ou você se rende ou se vende, não tem meio-termo e quem é do meio-termo só pode fazer o quê? Dar um passo atrás e se refugir na sua zona de conforto. E eis que vemos produtores de conteúdo se isolando cada vez mais, criando canais de assinatura onde seu conteúdo fica disponível a um público diminuto, porém fiel, redes sociais cada vez mais vazias e, na vida civil, opiniões cada vez mais silenciosas.

Não é a toa que o mercado de produtos por assinatura tem crescido tanto, afinal. Numa época em que ler Monteiro Lobato é problemática, o ato de comprar um livro se tornou perigoso. Pensar é crime.

Isso é claro que é ruim, mas assim como após as Guerras Religiosas uma nova civilização surgiu, a da linguagem, do material escrito, no lugar da civilização da imagem, das pinturas e esculturas, talvez vejamos o nascimento de uma nova civilizações depois de todo esse período de turbulência. Se será bom ou não, isso não nos cabe, mas se virá (e eu tenho certeza que virá), novos gênios também surgirão, inspirando pelas mentes esclarecidas, maneiradas, criativas e isoladas de nosso tempo.

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