terça-feira, 29 de setembro de 2020

Dica cinematográfica: "One Child Nation" (2019)

one_child_nation-442179700-large



Já que a China se tornou a líder mundial esse ano, porque não falarmos sobre ela aqui no blog? Afinal, nos próximos anos a influência chinesa se tornará cada vez maior e é bom nos prepararmos para o que vem aí.


Jialing Zhang é uma chinesa que emigrou para os EUA a fim de seguir uma carreira dentro da indústria cinematográfica da terra de Trump e lá ela teve seu primeiro filho. Ao visitar seus pais para lhes apresentar o neto, Zhang começou a lembrar da época em que era criança, nos anos 80, época em que a China implantou sua política de 1 filho. Ao revisitar as memórias, a diretora começa a descobrir fatos que nunca tinha se atentado e decide elaborar esse documentário sobre o tema.


A obra começa bem intimista, nos mostrando a vida de Zhang quando criança num vilarejo do interior do país, nos apresentando a forma como a política foi apresentada para os seus conterrâneos, através de uma ampla campanha propagandística que contava não apenas com os característicos outdoores e panfletos, mas também com músicas, programas na TV, no rádio e em anos recentes até na internet (os quais pertencem todos ao governo chinês). Ainda com todo esse bombardeamento de informação, a vida seguiu mais ou menos normalmente até a chegada do segundo filho de Zhang e aí as coisas começam a ficar sombrias.


A família da diretora começou a sofrer um certo ostracismo, eram vistos com maus olhos, até mesmo as outras crianças eram incentivadas a reagir com estranhamento com aquela notícia. E aí surge a pergunta: como a mentalidade de um país, que até então encarava como algo comum os casais terem vários filhos, pode mudar tão rápido e de maneira tão drástica?


A resposta é simples, mas é de difícil compreensão. O governo chinês é tão massivo, o alcance das mãos do Estado é tão imenso que eles conseguem controlar a forma como as pessoas pensam. Afinal, desde a revolução chinesa, que levou um monte de submissos a Mao a liderarem uma revolta armada e sangrenta contra o tradicional governo do país, a China se tornou uma nação de pessoas submissas ao poder de uma casta que tem garantias jurídicas de governar sobre todos. Em suma, a propaganda e o controle estatal fizeram essa mudança.


Mas isso é muito abstrato e o problema é ainda mais grave. Quando oferecem a mãe da diretora fazer um procedimento médico de infertilidade a diretora passa a investigar até onde essa influência do governo. Famílias inteiras eram ordenadas a se castrarem para que não tivessem mais filhos, afinal só há uma forma de uma lei ser imposta, é através da força e se a lei diz que você só pode ter um filho que outra forma de fazê-la valer? Castrando os casais que já tem um filho ou forçando mães a abortarem seus bebês nasciturros.


No entanto, num país com mais de 1 bilhão de pessoas, não há como realizar isso. O filme mais uma vez nos mostra a ineficiência inerte ao Estado, ainda que essa não seja a sua intenção. É impossível do Estado, mesmo o Estado mais autoritário, como o chinês, de controlar toda a sua população e o que vemos a seguir é algo ainda mais aterrador: num país com mais de 1 bilhão de pessoas, com um Estado esmagador e uma população sem virtudes, é óbvio que haverá a criação de um mercado negro.


Foi a partir dos anos 80 que programas de adoção internacional se voltaram para a China, afinal, casais não podiam ter mais que 1 filho, então eles eram deixados para adoção. Nada de errado, é até uma atitude muito bonita, mas o problema que o documentário nos mostra é que, muitas vezes, isso era feito sem a consessão dos pais. Bebês sumiam das casas, eram levados embora para nunca mais serem vistos por "fiscais", os quais oficialmente nunca foram ligados ao governo e eram vendidos a orfanatos que então negociavam com agências de adoção internacional.


O resultado é uma bagunça e um tratamento desumano de revoltar. Mães viam seus filhos irem embora para nunca mais voltar, "fiscais" recebiam dinheiro por levar bebês até orfanatos, às vezes cumprindo até uma certa cota semanal de bebês, gêmeos eram separados e enviados para famílias diferentes ao redor do mundo.


É uma crueldade sem tamanho, mas é apenas no final que chegamos ao momento mais desolador do filme. Quando a diretora do documentário já tinha descoberto tudo isso e decidiu apresentar os fatos para diversas pessoas da sua vila, pessoas que inclusive perderam seus filhos, encontra uma reação branda, um dar de ombros resignado e aceptivo para com as barbáries cometidas contra eles mesmos. E aí vem a observação que deveria ter encerrado a obra: "quando toda decisão é tomada por outra pessoa que não você a vida toda, fica difícil se sentir responsável pelo que acontece".


E essa é a realidade do povo chinês hoje. Não importa quantos crimes contra a humanidade a China cometa, seu povo não se sente responsável por isso, porque, de fato, eles não o são. São apenas peças dentro de um joguinho onde apenas Xi Jinping e seus parceiros de casta podem participar. Ninguém na China anda com as próprias pernas, levanta a cabeça sem que o governo diga para levantar, fala ou respira sem que lhe dêem permissão. É um povo submisso e vítima de qualquer tipo de barbaridade. 


Nem a mente mais maléfica poderia pensar numa realidade tão distópica, mas o mundo tratou de realizar isso para nós e nós devemos aprender e caminhar sozinhos.


A realidade brasileira não está muito distante. Infelizmente, a mentalidade popular é também submissa, abandonada ao relento, acreditamos que as pessoas ao nosso redor não conseguem caminhar sozinhos e precisam de um apoio, mas um apoio estatal é um apoio que não vai embora, é um apoio que só cresce e isso aos poucos vai nos desumanizando.


É preciso reagir.





terça-feira, 22 de setembro de 2020

Dica cinematográfica: "O Beijo no Asfalto" (1980)

f2010e5149a5b7202c0d122e99bcb822

Vi esse filme no instagram do Pedro Sette-Câmara e fiquei curioso na obra, baseada numa peça de Nelson Rodrigues e supostamente girardiana. De Girard eu entendo e decidi ver qual é a desse filme.

O Beijo no Asfalto conta a história de Arandir, um rapaz recém-casado, trabalhador honesto e boa pinta que vê um acidente de trânsito, onde um rapaz é morto. Apenas mais um dia na cidade grande, não fosse pelo fato de que Arandir se aproximou do rapaz moribundo e o beija na boca. Nada mais estranho, não fosse pelo fato de que a cena foi presenciada pelo sogro de Arandir, que correu para a casa da filha a fim de saber se ela não notara nada estranho com o marido recentemente.

Paralelo a esse rio de estranhezas, temos um chefe de polícia que havia se envolvido num escândalo e estava correndo o risco de ver sua carreira escorrer pelo ralo e um repórter que, sabendo do acidente, decide unir forças ao policial para fazer fama solucionando um caso bizarro.

Pelo fato de ser uma obra rodrigueana e ter sido feito nos anos 80, o filme não tem nenhuma das discussões chatas que hoje geraria com relação a relacionamento homossexuais e violência policial. Ao contrário, a história nos é apresentada da maneira mais crua possível e não poderia ser melhor.

O filme é cru, frio e nada polemista, apesar do tema que trata. Tudo é apresentado com naturalidade e nós, espectadores do século 21, acostumados a ter as opiniões regurgitadas para nós a fim de uma digestão rápida, ficamos estarrecidos.

Aos poucos, a superfície normalizada a qual somos apresentados, vai se diluindo e seu momento mais marcante é quando pai e filha caçula discutem sobre uma suposta relação incestuosa que existia entre o pai e a filha mais velha. A discussão é tratada com zombaria, mas os espectadores ficam com uma pulga atrás da orelha, exceto os girardianos, que vêem isso com um sorriso no rosto, mas sabem que nas boas obras nada é entregue de bandeja assim.

O buraco é mais profundo e a cena final, de conflito, contrastes e revelações é um escândalo, mas é excelente e, neste filme, é lindamente filmada, de forma a nos apresentar um retorno ao início da obra. Deu a lógica, mas é a lógica girardiana.

Vale muito a pena conferir esse filme, que é um diamante oculto, na minha opinião. Mais uma dessas obras antigas em que se faziam filmes corajosos que nada deixavam a desejar ao cinema exterior e que, infelizmente, se perdeu no meio de trágicos investimentos públicos a comédias pastelões.

Ainda bem que existe a internet pra nos presentear com essas obras.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Dica quadrinística: "Slam Dunk" (1990-1996)

220042_520x520

Finalmente terminou a publicação de Slam Dunk no Brasil pela Panini numa edição de luxo que não deixa nada a desejar para as expectativas criadas em torno dela, mas será que a história valeu todo o investimento?

Slam Dunk conta a história de Hanamichi Sakuragi, um valentão que só se mete em confusão com outros valentões do escola colegial onde estuda, o Shohoku. No entanto, o rapaz tem um coração romântico e após levar mais um fora de uma menina que gostava, se apaixona por Haruko Akagi, que lhe apresenta o basquete e afim de impressionar a menina, Sakuragi entra no time de basquete do colégio.

b651be39296bccb8a0af60a7ae2a96b8

O problema é que o time de basquete é constituído pelo irmão mais velho de Haruko e pela sua paixão platônica, Kaede Rukawa, o qual também é um sisudo astro do basquete colegial. Takenori Akagi, o irmão mais velho de Haruko tem a ambição de fazer do Shohoku o campeão do campeonato intercolegial nacional e acaba aceitando a entrada de outros encrenqueiros no time, como Mitsui e Miyagi.

A partir daqui teremos spoiler, TEJE AVISADO!

Do começo do mangá até a entrada e formação de todo o time, acompanhamos um time desastrado lentamente entrar em ordem. E por lentamente, eu quero dizer, shonen-namente lento! As partidas de basquete, que no mundo real duram menos que a metade de uma partida de futebol, duram volumes inteiros, aprofundando-se ricamente em cada um dos personagens, cada um com seu próprio drama, passado e motivação. Essa lentidão serve pra criar uma aproximação do leitor com cada um dos membros do time e, ao final do volume 16, eu literalmente chorei.

slam-dunk-fotos-resenha-chunan-panini-11

Imagine um filme de esporte muito emocionante... imaginou? Pois é, Slam Dunk é ainda melhor. O Shohoku é um time azarão, vindo de uma escola normal com um capitão (Akagi) que tem um sonho muito grande para a escola em que se encontra. No entanto, com a chegada de Rukawa, um astro do basquete, vê a oportunidade de entrar no campeonato. Sakuragi é um desastrado, mas suas habilidades evoluem muito e, acreditando nas palavras da irmã, Akagi decide dar uma chance para o ruivo. Por fim, Miyagi entra no time após se envolver numa briga com Sakuragi, mas se torna seu amigo e Mitsui, que havia perdido o controle de sua vida, volta para o time. Todos se reúnem em torno do técnico Anzai, que também tem seus próprios dramas, baseados num ex-aluno numa época em que era exigente demais. Aos poucos e depois de algumas derrotas feias, o time vai ganhando espaço, vencendo os jogos, conquistando campeonatos e sempre se superando. Nesse quesito é o típico shonen onde os personagens principais vão tirando poder do rabo e vencendo todos os vilões do nada, mas há uma diferença subtancial: esse não é um shonen comum.

Slam Dunk não se passa numa realidade paralela com poderes especiais, muito pelo contrário, é um mangá bem pé no chão e, ao mesmo tempo em que nos aprofundamos nos dramas pessoais de cada um dos jogadores titulares do Shohoku, mergulhamos também na arrogância dos jogadores dos times adversários que não acreditam que podem perder para um time pequeno como o Shohoku. Nós torcemos a cada página para a descoberta de novas habilidades, para a superação dos desafios e as vitórias que os azarados vão conquistando.

109572_520x520

E tudo tem um custo. Ao final do mangá, o time alcança um nível que, outrora, seria impossível de ser alcançado não fosse o fato de que, para isso, eles sacrificam os seus sonhos. É semifinal, se não me engano, do campeonato nacional e eles estão enfrentando o melhor time do Japão, todos dão tudo de si e nosso anti-herói ruivo sofre um acidente e, literalmente, sacrifica as costas para poder ganhar do melhor time do Japão. O jogo é incrível, super bem desenhado, com uma narrativa incrível guiada pelas sábias e talentosas mãos de Takehiko Inoue, mas é decepcionante.

Não é o jogo da final e o Shohoku acaba perdendo o campeonato. Sakuragi não joga basquete, embora ao final ele prometa para si mesmo que vai voltar a jogar, Akagi não consegue a bolsa esportiva pra jogar basquete, Rukawa não vai para os EUA e Miyagi e Mitsui são os únicos que continuam jogando basquete no Shohoku, ainda um time azarão, ainda não sendo uma potência no basquete japonês, basicamente começando tudo de novo.

É um pouco decepcionante, pois a relação que criamos com esses personagens é muito forte, mas isso é ver o copo meio cheio, pois ao longo do último jogo vemos um time que cresce unido, com jogadores confiando um nos outros e fazendo de tudo pelo time, não só por eles mesmos, mas para que todos pudessem ganhar e se dar bem. É uma baita lição de companheirismo, resiliência e vivência pela comunidade.

0c94fc2aa4ab88f2ad36c17d4657d2b0

O mangá é desenhado por Takehiko Inoue e é fruto da paixão do autor por basquete. Inoue tem mais fama, atualmente, pelo seu mangá de samurai, Vagabond, mas o traço dele é muito diferente em Slam Dunk. Ao invés do traço rabicado encontramos aqui um traço muito firme, detalhista e com um pé no realismo. A arte é incrível e na atual edição que a Panini acabou de lançar temos o prazer de ver rabiscos do autor e páginas coloridas. Infelizmente, na versão japonesa dessa edição de luxo, temos páginas pintadas mas apenas de vermelho, que é a cor do Shohoku e isso não foi mantido na edição brasileira. Uma pena e faz realmente muita falta, pois essas páginas são substituídas por terríveis tons de cinza bem mequetrefes, os quais não fazem jus ao preço que pagamos. Em todo caso, são detalhes que não diminuem o valor artístico dessa obra sensacional.

A sensação de ver o final dessa série que me acompanhou pelos últimos 5 anos é amarga, mas ao mesmo é um alívio não ter mais que gastar dinheiro com os quadrinhos inflacionados da Panini, como é o caso de Lobo Solitário, o outro mangá que estou colecionando.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Dica teórica: "A Vida Intelectual" (1921)

61qro2ftsql

Recebi a dica de leitura desse livro de um comentário no blog e, como ouvi falar muito dele, resolvi comprar e li rapidamente. Uma ótima obra, de fato e me arrependo de não ter a lido antes.

A Vida Intelectual foi escrita em 1921 por um dos intelectuais franceses que, na primeira metade do século XXI, revolucionou o pensamento católico ao retornar a filosofia tomista, em desuso na época. É algo difícil de imaginar hoje, quando a Igreja se divide entre líderes populares feito de gato e sapato por quem está no poder e líderes modestos que repousam nos ombros dos gigantes do pensamento ocidental. No entanto, estamos falando de uma obra escrita numa época em que o doutor angélico estava completamente esquecido.

E baseando-se numa carta de Santo Tomás em que ele recomenda 16 passos para um bom estudo, Sertillanges desenvolve conselhos para desenvolver um bom estudo, angariar conhecimento e ter uma boa vida balanceada. Sim, o livro não é apenas voltado para a área da educação, mas ele engloba conselhos para toda a vida de quem tem a ambição de ser melhor, simplesmente.

O livro foca na vida de estudos e é assim que ele começa, como desenvolver uma boa vida de estudos? No entanto, para se ter uma boa vida de estudos, é preciso ter uma vida equilibrada. É preciso paciência, para não se atropelar nos conhecimentos, afinal ninguém aprende física sem antes aprender matemática e ninguém aprende raiz quadrada antes de saber multiplicar e ninguém aprende a multiplicar sem antes aprender adição. O conhecimento é como uma árvore, que tem raízes muito bem definidas, estáveis e fortes, mas que se divide em inúmeros ramos.

E esse talvez seja o principal defeito do ensino brasileiro atual, pois nossos alunos são levados a aprender coisas fora dessa linha de desenvolvimento natural. Abra qualquer livro de português do primeiro ano e veja como são ensinadas as palavras. Ao invés do aluno aprender o beabá, unindo letraspara formar sílabas e sílabas para formar palavras, ele aprende palavras dentro de contextos que, supostamente, deveriam fazer parte da sua realidade.

Nada mais errado...

Mas enfim, além de paciência, é preciso humildade, para saber reconhecer sua ignorância. Lembra dos pensadores que estão em ombros de gigantes? Pois é, os gigantes também estão repousados em algo e Sartilanges nos diz que é a Verdade. Alguém que almeja ser um pensador, levar uma vida de estudos, tem que entender que se busca a Verdade, acima de tudo, mas todo mundo começa de maneira humilde.

Além disso é necessário temperança, para não se sobrecarregar, afinal mesmo o estudo, que é algo bom, pode ser algo ruim. Pra quem é católico, é fácil identificar ensinamentos bíblicos muito populares nas diversas comunidades, como o de que não se peca apenas pelo excesso, mas também pela omissão.

Ao final, aprendemos que a vida de estudos, apesar de parecer rígida e rigorosa, é, na verdade, doce e divertida. É uma vida que todos deveriam almejar, mas alguns tem uma vocação especial para isso. E mesmo aqueles que não tem essa vocação, sempre poderão achar um espaço em sua rotina para os estudos.

A quem almeja essa vida de pensador, mesmo as horas de lazer são aproveitadas para o aprendizados, para a abstração de conhecimento, que se concentra em todas as medidas de todas as coisas. Quanto mais conhecimento, mais próximo estaremos da Verdade.

O livro tem uma popularidade renovada no Brasil. Isso é um excelente sinal, nossa cultura tem de fato evoluído para melhor e podemos encontrar essa obra em diversos formatos, tem capa dura, capa mole, edição bilíngue, enfim... é uma obra básica, como eu disse, deveria ter lido antes, teria facilitado muito minha vida, mas é também uma obra profunda.

Uma obra que merece ser revisitada muitas e muitas vezes.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Dica quadrinística: The Complete Calvin and Hobbes (2005)

414p6-rhwpl


Em meados do ano passado eu realizei uma compra absurda: gastei mais de 200 reais numa caixa com 4 livros num formato muito estranho, retangular deitado, onde se encontravam todas as tirinhas publicados de Calvin e Haroldo, precedidas de um comentário do seu autor.


Hoje, mais de um ano depois, 1450 páginas de leitura finalizadas, percebo que foi o dinheiro mais bem gasto da minha vida.


São 4 volumes, com quase 400 páginas cada um e logo no primeiro, temos um longo texto de apresentação do autor, Bill Watterson, contando como foi sua trajetória de vida, da sua infância numa cidade pequena do interior de Ohio até seus desentendimentos com o sindicato de cartunistas que levou a sua aposentadoria dos periódicos.


A história de vida dele é bem inspiradora. Não é daquelas com enormes e absurdos atos de heroísmo, bravura ou resistência, mas é uma história simples de muitas decepções, esforço e esperança que qualquer um pode se identificar. Formado num curso de desenho na universidade onde um dos seus artistas favoritos trabalhava, ele foi contratado por um período de teste num jornal para fazer charges políticas. No entanto, o trabalho exigia muito mais do que seu conhecimento da realidade local poderia sustentar e ele acabou sendo demitido. A partir daí começou a trabalhar numa agência de publicidade, voltou a morar com os pais, desenhava seus projetos pessoais tentando achar uma oportunidade de emprego como cartunista por 4 anos até que foi contratado por um jornal local perto da região onde cresceu e lá começou toda a história de Calvin e Haroldo.


A obra é magnífica pois nos mostra não apenas a completude das desventuras de um menino hiperativo e seu tigre de pelúcia, mas também o desenvolvimento de Watterson como artista e o desenvolvimento da indústria de histórias em quadrinhos nos EUA.


Mas vamos por parte. Falemos primeiro das aventuras de Calvin e Haroldo.


As tirinhas incluíam inicialmente apenas o garoto, mas logo Haroldo foi apresentado e aí as tirinhas deram um giro de 180 graus para o absurdo. As histórias passaram a incluir dinossauros, aventuras no espaço, aventuras de um herói genérico de capa e máscara, inimigos alienígenas, monstros embaixo da cama, viagens no tempo, mas tudo sem perder a conexão com a realidade. Em nenhum momento somos levados a crer que as aventuras fantásticas de Calvin são reais, muito pelo contrário, somos lembrados a todo momento que elas são imaginárias e que ele é, de fato, um garoto hiperativo e, tenho certeza, um estudante de psicologia dedicado iria encontrar uma série de traços neuróticos no garoto.


No entanto, isso não interessa a Bill Watterson, o que o interessa é tecer críticas e comentários ácidos sobre a condição da cultura americana e fatos do momento, mas que, mesmo hoje, com quase 30 anos de distância, continua atual e é até assustador o quão premonitório são certos comentários e atitudes do loirinho de cabelo arrepiado.


O estilo de Watterson faz um desenvolvimento incrível ao longo das aventuras e isso é o que mais me chamou a atenção ao longo dessa leitura divertida. Começando de forma simples, respeitando as formas geométricas que são a base de qualquer desenho e chegando finalmente ao estilo tão característico e copiado dele, livre, criativo, belíssimo!


E é por ser tão copiado e também por outros fatores que ele não desenha mais. As histórias de Calvin e Haroldo, muito cedo, fizeram sucesso e logo foram surgindo ofertas para serem distruidas para outros jornais e até mesmo para outras partes do mundo, o que levou a minha mãe a conhecê-lo. No entanto, Watterson sempre foi meio relutante quanto a isso e achava legal as tiras serem publicadas, mas ao mesmo tempo não queria que elas se transformassem em produtos altamente mercadológicos. Em pouco tempo surgiram propostas para ele vender os direitos de imagem para bonecos, desenhos animados e afins, mas ele nunca quis.


E então entra a pirataria. Sabe esses adesivos de carro que mostram o Calvin mijando e mostrando o dedo do meio? Pois é... Bill Watterson desperdiçou muito dinheiro pra processar todo mundo que abusava dos seus desenhos, mas chegou num ponto que ele percebeu aquilo que Holden Caulfield nos ensina: "nem em 1000 anos você poderia apagar todos os foda-se do mundo". Ele desistiu de acabar com a pirataria, mas sempre se entristeceu ao ver sua obra ser usada e abusada por aí.


A razão disso é Watterson considerava suas tirinhas mais do que apenas tiras de jornal, mas também obras de arte e tentava explorar o potencial artístico daquilo. Por essa razão sua preferência eram os quadrinhos dominicais, que eram publicados numa página inteira de jornal, coloridos e lá você percebe que ele, de fato, dedicava-se mais.


Eram nessas páginas que havia um cuidado maior com os desenhos, havia uma exploração imensa de possibilidades para enquadrar a história e, de fato, são verdadeiras obras de arte. É, de fato, o que faz o quadrinho ser considerado a nona arte.


No entanto, isso não durou muito. Logo o sindicato passou novas regras para a publicação de quadrinhos, para os valores que os autores recebiam e Watterson se revoltou contra a máfia se tornando uma das vozes mais ferozes contra eles, mas não teve como. E você percebe essa mudança nas páginas, os quadrinhos passaram a ser publicados num formato menor e padronizado. Ainda que Watterson tenha procurado explorar o formato o máximo que pode, inserindo quadrinhos de diversos tamanhos, expandindo o cenário para além das linhas de divisão de quadros e as possibilidades narrativas incluídas ali, não teve jeito. As represálias e a opressão da máfia sindicalista aumentou a um ponto em que ele desanimou completamente de desenho e entre 1994 e 95 entrou num ano sabático.


Eu não sei exatamente quando foi exatamente que os fatos que mencionarei aconteceram, mas sei que Watterson não estava sozinho e Jeff Smith foi um influência para Watterson desistir de tudo. O mercado de quadrinhos independentes já existia há tempo, mas foi só no início dos anos 90 que ele bombou e Jeff Smith se tornou uma de suas figuras mais importantes com a publicação de Bone. Smith foi o cara que decidiu montar os encadernados de seus gibis e vendê-los em livrarias. É óbvio que o negócio deu certo e seguindo a mesma ideia, sabendo que era possível, Watterson abandonou o sindicato, os jornais e decidiu publicar por conta os livros que nós conhecemos de Calvin e Haroldo.


Infelizmente essa edição histórica não está disponível em português, mas ouso dizer que vale a pena o original em inglês, pois eu identifiquei várias piadas que foram neutralizadas em português, como piadas que fazia referência ao comunismo. Portanto, em inglês, você tem ideia da total dimensão que as aventuras de Calvin e Haroldo alcançavam em sua crítica, ainda atual, à sociedade.


Uma obra de arte magnífica, um trunfo da nona arte, de valor social, história, artístico, mas principalmente, de divertimento.


A ver: Querido, sr. Watterson.





quinta-feira, 3 de setembro de 2020

O que eu perdi: "You Are Beneath Me" do End of a Year (2010)

a1018018587_16

Completando 10 anos em 2020, You Are Beneath Me é a desculpa perfeita para eu restaurar essa categoria de posts que não recebe atualizações há mais de um ano.

[bandcamp width=100% height=42 album=451097658 size=small bgcol=ffffff linkcol=0687f5 track=595934135]

You Are Beneath Me é o terceiro álbum do Self-Defense Family, que em 2010 ainda se apresenta sob a alcunha de End of A Year e é sob essa alcunha que eu lhes apresento, até porque há uma mudança na forma como a banda se comportou após a mudança de nome, pois até então eles eram muito mais hardcore puro e simples do que a banda experimental de rock que se tornaram a partir do excelente Try Me, embora os elementos que viriam a classifica-los como "rock experimental" já estivessem todos ali, em You Are Beneath Me.

A começar pela primeira faixa do álbum, a qual é simplesmente um receituário de como ouvir apropriadamente este álbum, com caixas de som ruins, distribuídas numa forma triangular ao redor da sua cabeça, além de alguns conselhos pra sua vida, como entender que seus pais merecem respeito até o momento em que eles se divorciarem e que você deve se render a mídia. Isso tudo é feito num spoken word típico do Patrick Kindlon, o talentoso vocalista que é também escritor de HQs.

Aliás, todas as canções contam com esse vocal falado, que não parece ser propositalmente colocado ali para parecer um spoken word, é apenas o jeito que o Patrick escolheu "cantar", não cantando. Para quem acompanha os outros álbuns do Self Defense Family e Drug Church (outro projeto musical do cantor), sabe que ele, hoje, tenta cantar, mas naquela época ele ainda estava pouco se lixando para isso.

[bandcamp width=100% height=42 album=451097658 size=small bgcol=ffffff linkcol=0687f5 track=1286611323]

Isso é claro que afasta muita gente, mas acho que poucos iriam negar que a banda é muito boa, harmonicamente falando. Contando com referências daquele estilo de hardcore que se popularizou em volta da capital dos EUA (a minha preferida sendo o Bad Brains), eles criam um som rápido, explosivo, mas não agressivo como muitas bandas mais próximas do metal. Há também uma veia mais próxima do indie, que na época já flertava com o hardcore nos EUA e iria culminar naquele excelente álbum do Cloud Nothings e no Title Fight.

Todas as canções, exceto a primeira, são nomeadas com base em pessoas que os membros da banda conheciam, mas isso é apenas um detalhe interessante, nada que afete os "conceitos" trabalhados, que não encontram nenhuma coesão. As letras falam de basicamente qualquer coisa, desde como ouvir o álbum, até os desejos humanos, a falta de explicação para porque alguns idiotas roubam e heranças. Tudo com um ar debochado típico dos descolados daquela época, sem achar um tema em comum que cole tudo junto. As letras estão mais para grandes aglomerados de ideias e pensamentos que transitavam pela mente do vocalista quando ele as escreveu, mais ou menos como um grande fluxo de consciência punk regrado a fortes e enérgicas melodias.

O álbum completa dez anos agora em 2020, mas ainda não recebeu todas as gratificações que merecia, pois ele adiantou muita coisa que viria a aparecer tanto na cena do indie rock quanto na cena do hardcore nos EUA e talvez fosse até por isso que a banda acabou aparecendo em grandes festivais de música após o lançamento.

[bandcamp width=100% height=42 album=451097658 size=small bgcol=ffffff linkcol=0687f5 track=19924057]

Aos que gostariam de ouvir mais, a continuação da banda como Self Defense Family não é recomendada, mas os vocais de Patrick Kindlon encontram uma continuação junto de Drug Church, que é o projeto mais próximo desse álbum no momento e é igualmente incrível.

Em todo caso, fica aqui o meu obrigado a banda por soltar essa pérola e também um parabéns por terem realizado tal projeto, que foi muito bem sucedido, envelhecendo deveras aprazível para a audição de quem curte umas boas guitarras rasgadas.

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Dica cinematográfica: "Lu Over the Wall" (2017)

61it6optll

Hoje a dica é de um filme que eu, lastimavelmente, perdi na época em que ele saiu.

Lu Over the Wall é mais um filme criado pelo incrível Massaki Yuasa, que já apareceu aqui no blog algumas vezes e conta com o seu característico estilo de desenho colorido, fluído e personagens alongados. Dessa vez ele nos conta uma história de amor a-lá Ponyo, mas da maneira única dele.

Logo no começo do filme começamos Kai, um típico garoto personagen principal de animes, sente-se isolado, não conversa com muita gente, senta perto da janela na escola e esconde um talento: o da música. Kai passa as noites fazendo canções, o que atrai a atenção de uma sereia que mora na baía próxima a casa dele. Curioso, ele decide ensaiar com uma banda de dois colegas de sala, os quais tinham acesso a uma enorme rocha cujas lendas diziam que protegia as sereias. Nesse dia, Kai conhece Lu, uma serei muito animada, que quando ouve música consegue transformar seu rabo em pernas e pode interagir com humanos.

A partir daí o grupo se envolve em várias desventuras, que levarão Lu a se tornar uma sensação da cidade, seu pai também aparece, ajudando os pescadores, os dois (pai e filha) serão presos, junto com Kai e seus amigos quebrarão a maldição da grande rocha e terão que se mudar.

Sim, eu entreguei o filme todo, mas não se sinta mal com isso, pois não é essa história principal o que importa. O que importa é como a narrativa é bem guiada nessa obra, coisa de mestre mesmo e que mostra o quanto o Masaaki Yuasa está próximo dos grandes nomes do cinema de animação, como Walt Disney e Hayao Miyazaki. Claro que o foco dele não são filmes para a família, mas se fosse já teria se tornado um queridinhos dos nerds e otakus de plantão.

Esse filme é a prova cabal disso.

No entanto, ele conta com seu característico estilo de animação e eu sei que isso acaba afastando muita gente da sua obra. Não entendo como, mas essa é a realidade. Tem muita gente que não gosta do seu estilo de desenho.

Já eu acho um deleite para os olhos e nessa história mais ainda, pois há a presença de muita água e se há algo que encaixa muito bem com seu estilo de animação é água. O estilo já é fluído e leve, encaixando perfeitamente com a temática, como se a animação fosse uma extensão da história, contribuindo ainda mais para a construção da narrativa.

O filme ainda conta com uma trilha sonora incrível, cheio de músicas pops reais japonesas. Mas também não poderia ser menos do que isso, porque boa parte do filme também é focado no tema da música; todos os personagens têm talentos musicais. Assim como a animação, a trilha sonora também se encaixa como uma luva no filme, transformando-se em parte integrante da narrativa e contribuindo para a sua construção.

E aí, o que mais você precisa saber pra ir assistir Lu Over the Wall?