terça-feira, 8 de setembro de 2020

Dica quadrinística: The Complete Calvin and Hobbes (2005)

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Em meados do ano passado eu realizei uma compra absurda: gastei mais de 200 reais numa caixa com 4 livros num formato muito estranho, retangular deitado, onde se encontravam todas as tirinhas publicados de Calvin e Haroldo, precedidas de um comentário do seu autor.


Hoje, mais de um ano depois, 1450 páginas de leitura finalizadas, percebo que foi o dinheiro mais bem gasto da minha vida.


São 4 volumes, com quase 400 páginas cada um e logo no primeiro, temos um longo texto de apresentação do autor, Bill Watterson, contando como foi sua trajetória de vida, da sua infância numa cidade pequena do interior de Ohio até seus desentendimentos com o sindicato de cartunistas que levou a sua aposentadoria dos periódicos.


A história de vida dele é bem inspiradora. Não é daquelas com enormes e absurdos atos de heroísmo, bravura ou resistência, mas é uma história simples de muitas decepções, esforço e esperança que qualquer um pode se identificar. Formado num curso de desenho na universidade onde um dos seus artistas favoritos trabalhava, ele foi contratado por um período de teste num jornal para fazer charges políticas. No entanto, o trabalho exigia muito mais do que seu conhecimento da realidade local poderia sustentar e ele acabou sendo demitido. A partir daí começou a trabalhar numa agência de publicidade, voltou a morar com os pais, desenhava seus projetos pessoais tentando achar uma oportunidade de emprego como cartunista por 4 anos até que foi contratado por um jornal local perto da região onde cresceu e lá começou toda a história de Calvin e Haroldo.


A obra é magnífica pois nos mostra não apenas a completude das desventuras de um menino hiperativo e seu tigre de pelúcia, mas também o desenvolvimento de Watterson como artista e o desenvolvimento da indústria de histórias em quadrinhos nos EUA.


Mas vamos por parte. Falemos primeiro das aventuras de Calvin e Haroldo.


As tirinhas incluíam inicialmente apenas o garoto, mas logo Haroldo foi apresentado e aí as tirinhas deram um giro de 180 graus para o absurdo. As histórias passaram a incluir dinossauros, aventuras no espaço, aventuras de um herói genérico de capa e máscara, inimigos alienígenas, monstros embaixo da cama, viagens no tempo, mas tudo sem perder a conexão com a realidade. Em nenhum momento somos levados a crer que as aventuras fantásticas de Calvin são reais, muito pelo contrário, somos lembrados a todo momento que elas são imaginárias e que ele é, de fato, um garoto hiperativo e, tenho certeza, um estudante de psicologia dedicado iria encontrar uma série de traços neuróticos no garoto.


No entanto, isso não interessa a Bill Watterson, o que o interessa é tecer críticas e comentários ácidos sobre a condição da cultura americana e fatos do momento, mas que, mesmo hoje, com quase 30 anos de distância, continua atual e é até assustador o quão premonitório são certos comentários e atitudes do loirinho de cabelo arrepiado.


O estilo de Watterson faz um desenvolvimento incrível ao longo das aventuras e isso é o que mais me chamou a atenção ao longo dessa leitura divertida. Começando de forma simples, respeitando as formas geométricas que são a base de qualquer desenho e chegando finalmente ao estilo tão característico e copiado dele, livre, criativo, belíssimo!


E é por ser tão copiado e também por outros fatores que ele não desenha mais. As histórias de Calvin e Haroldo, muito cedo, fizeram sucesso e logo foram surgindo ofertas para serem distruidas para outros jornais e até mesmo para outras partes do mundo, o que levou a minha mãe a conhecê-lo. No entanto, Watterson sempre foi meio relutante quanto a isso e achava legal as tiras serem publicadas, mas ao mesmo tempo não queria que elas se transformassem em produtos altamente mercadológicos. Em pouco tempo surgiram propostas para ele vender os direitos de imagem para bonecos, desenhos animados e afins, mas ele nunca quis.


E então entra a pirataria. Sabe esses adesivos de carro que mostram o Calvin mijando e mostrando o dedo do meio? Pois é... Bill Watterson desperdiçou muito dinheiro pra processar todo mundo que abusava dos seus desenhos, mas chegou num ponto que ele percebeu aquilo que Holden Caulfield nos ensina: "nem em 1000 anos você poderia apagar todos os foda-se do mundo". Ele desistiu de acabar com a pirataria, mas sempre se entristeceu ao ver sua obra ser usada e abusada por aí.


A razão disso é Watterson considerava suas tirinhas mais do que apenas tiras de jornal, mas também obras de arte e tentava explorar o potencial artístico daquilo. Por essa razão sua preferência eram os quadrinhos dominicais, que eram publicados numa página inteira de jornal, coloridos e lá você percebe que ele, de fato, dedicava-se mais.


Eram nessas páginas que havia um cuidado maior com os desenhos, havia uma exploração imensa de possibilidades para enquadrar a história e, de fato, são verdadeiras obras de arte. É, de fato, o que faz o quadrinho ser considerado a nona arte.


No entanto, isso não durou muito. Logo o sindicato passou novas regras para a publicação de quadrinhos, para os valores que os autores recebiam e Watterson se revoltou contra a máfia se tornando uma das vozes mais ferozes contra eles, mas não teve como. E você percebe essa mudança nas páginas, os quadrinhos passaram a ser publicados num formato menor e padronizado. Ainda que Watterson tenha procurado explorar o formato o máximo que pode, inserindo quadrinhos de diversos tamanhos, expandindo o cenário para além das linhas de divisão de quadros e as possibilidades narrativas incluídas ali, não teve jeito. As represálias e a opressão da máfia sindicalista aumentou a um ponto em que ele desanimou completamente de desenho e entre 1994 e 95 entrou num ano sabático.


Eu não sei exatamente quando foi exatamente que os fatos que mencionarei aconteceram, mas sei que Watterson não estava sozinho e Jeff Smith foi um influência para Watterson desistir de tudo. O mercado de quadrinhos independentes já existia há tempo, mas foi só no início dos anos 90 que ele bombou e Jeff Smith se tornou uma de suas figuras mais importantes com a publicação de Bone. Smith foi o cara que decidiu montar os encadernados de seus gibis e vendê-los em livrarias. É óbvio que o negócio deu certo e seguindo a mesma ideia, sabendo que era possível, Watterson abandonou o sindicato, os jornais e decidiu publicar por conta os livros que nós conhecemos de Calvin e Haroldo.


Infelizmente essa edição histórica não está disponível em português, mas ouso dizer que vale a pena o original em inglês, pois eu identifiquei várias piadas que foram neutralizadas em português, como piadas que fazia referência ao comunismo. Portanto, em inglês, você tem ideia da total dimensão que as aventuras de Calvin e Haroldo alcançavam em sua crítica, ainda atual, à sociedade.


Uma obra de arte magnífica, um trunfo da nona arte, de valor social, história, artístico, mas principalmente, de divertimento.


A ver: Querido, sr. Watterson.