quinta-feira, 6 de setembro de 2018

A arte de fazer um panfleto apresentado por Sonny Liew

61do2byyemhl

Hoje não é propriamente uma dica, pois não recomendo esse quadrinho a ninguém, mas é algo que merece ser comentado e é o mais novo (talvez, já que os caras lançam quadrinho a cada respirada) quadrinho do Pipoca e Nanquim, “A arte de Charlie Chan Hock Chie”.

Este livro é como se fosse um documentário e sua história já começa na capa interna, nos apresentando dois personagens históricos que serão o centro de todo o quadrinho Lee Kuan Yew e Lim Chin Siong, membros de uma resistência popular que assolou a Singapura, quando ainda pertencia a coroa britânica e que influenciaram enormemente Charlie Chan Hick Chie, o personagem que dá nome ao quadrinho. Hock Chie é um desconhecido, mas extremamente talentoso quadrinista de Singapura e Sonny Liew nos apresenta a sua história profissional e pessoal nesse quadrinho. História que se confunde com a história recente de Singapura.

O país insular, um dos tigres asiáticos, como aprendemos nas aulas de geografia na escola passou por grandes conflitos após a II Guerra Mundial, primeiro por ser uma colônia britânica e os ingleses terem perdido muito de seu poderio militar nessa época e com isso diminuem consideravelmente sua influência na ilha. Segue-se a isso uma forte influência ideológica de esquerda na ilha, pensamento que assolou toda a Ásia na época e a partir daí surgem Lee Kuan Yew e Lim Chin Siong, líderes populares. A história se estende, mas um resumo é que os dois líderes se desentendem, o partido de Lee Kuan Yew ganha as primeiras eleições e, apesar de suas motivações ideológicas, a Singapura cresce, se tornando o tigre asiático que é.

Como bem apresentado por Sonny Liew isso tem um custo, pois Lee Kuan Yew censura a imprensa, cria programas governamentais ridículos e até revoltantes, como o de controle populacional, exercendo uma verdadeira lavagem cerebral, ele próprio se torna uma espécie de ditador populista, fortalecendo um capitalismo de estado que cria uma rede burocrática tão extensa que é praticamente impossível de se imaginar fora dela e, nesse cenário, Sonny Liew, de maneira totalmente ingênua, resolve criar um livro político.

Apesar da forma como o livro se vende, esse é um livro sobre política e o pior, política de esquerda. O que já é chato, fica ainda pior.

Sonny Liew nos apresenta uma história que foi de sucesso, mas a um custo alto, sem nunca condená-la explicitamente, afinal, é um sucesso, mas faz pior ao apresentar Lim Chin Siong, o líder de “esquerda radical”, como ele mesmo diz no livro, como se fosse uma alternativa melhor e que iria fazer tudo do mesmo jeito. E provavelmente fosse fazer mesmo, como Sonny Liew deixa até implícito no final da obra, afinal, os dois são farinha do mesmo saco. A verdade é que Singapura estava entre a panela e a frigideira nessa época.

Sonny Liew entende pouco ou nada de economia ao condenar o governo por se render aos “capitalistas”, embora ele não saiba que privilégios estatais não sejam uma forma muito capitalista de negócio. Sonny Liew deixa de fora a “direita” e os “conservadores”, como se nunca tivessem atuado em Singapura, mencionando-os apenas numa breve nota e que deixa claro que sua atuação foi mais benéfica do que os dois grandes líderes de alguma forma ou outra exaltados nessa obra. Sonny Liew ainda apresenta “diferentes olhares sobre os fatos”, o que de forma alguma é algo ruim, per se, embora isso tenha que ser feito de maneira cuidadosa e eu não fui conferir as fontes para verificar isso. Enfim, Sonny Liew nos apresenta uma obra panfletária que seria nojenta, se não fosse genial.

Kuehnelt-Leddin alerta que a esquerda foi dominando aos poucos as artes, começando por um financiamento das belas artes após a revolução francesa, depois escolas e por fim centros de divulgação cultural e assim eles criam as melhores peças de teatro, os melhores filmes, as melhores músicas e afins. São peças de arte que, apesar de vazias de significado ou com um significado revoltante, são belíssimas e nós temos que dar o braço a torcer e apenas abaixar a cabeça para a sua superioridade artística, enquanto ficamos contando dinheiro, abrindo nossos próprios negócios e tocando a vida. É triste, porque é real e esse livro é uma prova disso.

A escolha narrativa de apresentar uma história dentro de outra, aliado ao talento artístico de Sonny Liew, que domina todos os ramos possíveis das belas artes, de rascunho a pintura com tinta à óleo, faz desse livro uma leitura extremamente prazerosa, se você se liga no lado artístico de um quadrinho. Tá certo que todo quadrinho é uma obra de arte por si, mas nem todos admiram uma arte bem feita e essa arte não é bem feita, é perfeitamente feita.

É o ponto alto e o que salva o investimento, pois essa história não teria graça nenhuma, mas ao vermos ela pelos olhos de um artista que a acompanha de perto e muda o seu estilo conforme as tendências mundiais de quadrinho mudam é um colírio para os olhos. Sem contar as inúmeros referências que satisfazem qualquer nerd.

Sem contar o cuidado fenomenal que o Pipoca e Nanquim dá aos seus livros. Este é mais um capa dura, com sobre capa e detalhes em baixo relevo na capa, feito com um cuidado editorial exemplar e que só mostra o amor que os caras têm pelo material que trazem para o Brasil. Confesso que este é o primeiro livro que compro da editora, porque eles o venderam muito bem no canal deles do Youtube e tenho vontade de adquirir outros, acho que o próximo será o Beasts of Burden, que tô com vontade de ler há tempos.

Enfim, não recomendo esse livro se você é um cérebro pensante, mas se quer ver uma obra de arte admirável, compre-o.

3 pontos