quinta-feira, 11 de outubro de 2018

O herói africano

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Durante uma aula de literatura, a professora lança a seguinte frase (reproduzida aqui livremente e não literalmente, mas mantendo o sentido): “Meu problema com Pantera Negra é que no final há um herói que salva todo mundo. Não acho que as culturas africanas têm um herói. Isso é uma invenção americana, os africanos resolvem tudo no nível da comunidade”.

Ela não poderia estar mais errada.

Obviamente não me levantei na sala para expor alguns fatos que iriam derrubar essa frase, mas fiquei pensando nisso e tenho que compartilhar isso, afinal, por menor que seja o alcance de meus posts, eles alcançam algumas pessoas e esclarecer alguns pontos acerca da mitologia africana e o nosso conceito de herói, sempre será útil, não importa o alcance.

Comecemos pela própria terminologia da palavra “herói”. Etimologicamente, origina-se do termo grego hrvV, que mais tarde foi para o latim na forma de heros. No entanto, algumas fontes (não muito confiáveis, diga-se de passagem) indicam que um egiptólogo do século 19, Gerald Massey, afirmou que a palavra “herói” vêm do termo egípcio “Ma Haru”, que significa “O Típico Guerreiro” ou “Verdadeiro Herói”1. Provavelmente uma mentira descarada, mas, por experiência própria, sei que a verdade pouco importa no meio acadêmico, o importante é a crítica social.

Uma página de wiki sobre mitologia montou uma espécie de guia para os diferentes seres mitológicos africanos. Na seção “Rules and Heroes” é dito que muitos heróis foram transformados em divindades menores, como Shango, o deus das tempestades dos Yoruba, que pode ter sido um rei guerreiro2. Ou ainda o exemplo do primeiro rei Zulu, que provavelmente foi filho do deus do sol. E não é essa a mesma narrativa de Baco, o deus do vinho da mitologia grega ou Hércules, o filho de Zeus?

Mas além dessas similaridades, temos que buscar informações sobre o conceito de herói, que pode variar de contexto para contexto. Resumidamente, podemos afirmar que o herói é aquele que se sacrifica, tanto literalmente quanto figurativamente, para o bem de uma comunidade e a partir daí é reconhecido como um herói3. O próprio Michaellis reconhece o herói como “alguém conhecido por seus feitos”4. Nós vemos que esses feitos são obtidos através de desafios que o herói passa e ao final ficamos sabendo do que é importante para aquela determinada cultura a qual o herói pertence, como bem explicado por Levi-Strauss em sua Teoria de Oposição Binária5.

É por isso que os heróis geralmente nascem de grandes narrativas, o que nós chamamos de epopeia ou narrativa épica nada mais é do que histórias de (super)heróis e seus feitos6. Se há um herói africano, há um épico africano?7

É lógico que sim e não apenas um!

O primeiro deles e mais famoso é o épico de Mwindo, um exemplo fantástico da tradição oral africana, transcrito 4 vezes desde que chamou a atenção de ocidentais nos anos 508 conta a história de Mwindo, filho de Shemwindo, que tinha 7 esposas e após receber um presságio de que seu filho iria derrubá-lo do trono (já notou a similaridade com um certo mito grego?9), então decretou que todas as suas mulheres deveriam ter filhas. No entanto, sua sétima esposa Nyamwindo, que também era sua favorita, teve um filho. Shemwindo então tenta assassinar o bebê, que devido às suas habilidades sobre-humanas consegue sobreviver, até que é jogado num rio e vai parar na casa de seus tios. Após isso, Mwindo lidera seus tios para a vila de seu pai, mas seus tios destroem tudo e matam todos as pessoas do vilarejo. Mwindo então entra numa jornada pelo mundo dos mortos, a fim de fazer as pazes com seu pai, mas antes enfrenta Muisa, o governante do mundo dos mortos. Quando Mwindo salva seu pai, os dois fazem as pazes e passam a reinar juntos sobre a vila, que Mwindo reconstruiu. Após isso, Mwindo mata um dragão e é castigado pelo deus do trovão. Ele passa um ano de castigo e volta prometendo nunca mais matar um ser vivo, tornando-se um dos mais prósperos e pacíficos governantes. 10

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A história de Mwindo é passada de geração em geração pelo povo Nyanga11, que habita o Congo e nos revela as relações entre o povo Nyanga e o povo Pygmy. Povos distintos, mas que habitaram a mesma região, nem sempre de forma pacífica, mas no épico é celebrada de maneira positiva.

Além de Mwindo, temos ainda o épico de Sundiata12, o rei leão e fundador do Império Mali, que governou uma extensa região do oeste africano entre 1230 e 160013. Confirmado como uma figura histórica, seu personagem ganha ares mitológicos no épico de Sundiata, que segue de maneira bastante fiel a teoria do monomito14. Sundiata é destinado a ser líder do Império Mali, mas tem seu trono usurpado pela madrasta, então é exilado. Sundiata aceita essa condição, sabendo que um dia retornará e em seu exílio cria laços com diversos líderes de outras tribos vizinhas, ganhando o respeito de muitos guerreiros, que um dia viriam a ajuda-lo a ocupar o seu devido lugar no trono de Mali15.

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Sundiata foi conhecido como rei leão quando em vida e sua história realmente se parece com a do filme da Disney, embora o filme seja primariamente inspirado em Hamlet. Isso indica que nossas histórias tradicionais de mitos seguem uma estrutura de pensamento similar em toda a nossa espécie humana. O épico de Sundiata também nos conta a história de uma figura história, embora ficcionalizada. Da mesma forma é o mito de Bayajidda16, que documenta o surgimento do reino Hausa17, que compreende a atual Nigéria18.

Como dá pra se perceber, esses épicos não compreendem apenas uma pequena região africana, mas se espalham por todo o continente. Temos ainda o épico de Miqdada e Mayasa19, que relaciona a cultura Swahili com a cultura muçulmana e o épico de Lyiongo20, épico nacional da cultura Swahili, situada no leste africano21.

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Ainda no leste africano, mas fora do continente (olha só!), temos o épico nacional de Madagascar, Ibonia22, que conta a típica história de um herói real que parte numa jornada para salvar sua amada. Sua tradução já virou domínio público e pode ser conferida aqui.

Como vimos a lista é extensa e esse breve catálogo foi coletado numa pesquisa rápida, mas não apenas de épicos vivem os heróis africanos. A história de Makoma transborda testosterona, não é um épico, foi coletada no livro laranja de conto de fadas de Andrew Lang e conta a história de Makoma, que já nasceu um homem adulto, próximo ao rio Zambesi (que atravessa uma porrada de países, então é difícil saber de onde vem essa história), munido de um martelo, com o qual ele derrota desde crocodilos a gigantes23.

Além dos heróis masculinos, temos ainda a história de Thákane24, um mito sul-africano sobre uma caçadora de dragões25.

Como vimos, o conceito de herói não só encontra uma definição que abrange todos os heróis do mundo, como ainda pode ser encontrado em todos os lugares do mundo, inclusive a África. Aliás, afastar a África do ocidente, apenas porque nossa cultura parte da Europa é um erro gravíssimo. A Europa tem muito da África e vice-versa. Culturas são intercambiáveis e como tal, heróis também.

Nós nos acostumamos com um conceito americanizado de super-herói, com capa e super-poderes, mas muito da essência desse conceito é universal, como sua trajetória de aprendizado e aperfeiçoamento, seus talentos naturais e sua amizade com a vizinhança.

Fontes:

1 https://solarflareark.wordpress.com/2011/07/21/african-origins-for-hero-myths/

2 http://www.mythencyclopedia.com/A-Am/African-Mythology.html

3 https://myhero.com/elie-wiesel-concept-of-heroes

4 http://michaelis.uol.com.br/busca?id=WoVeb

5 https://lewisjoslina2media.wordpress.com/2013/10/12/narrative-theories-claude-levi-strauss-and-binary-opposites/

6 http://faculty.goucher.edu/eng211/epic_traditions_the_hero.htm

7 https://www.britannica.com/art/African-literature/The-riddle#ref1027492

8 http://www.greatbooksguide.com/Mwindo.html

9 https://mitologiagrega.net.br/edipo-e-jocasta-um-romance-proibido/

10 http://www.mythencyclopedia.com/Mi-Ni/Mwindo.html

11 https://www.encyclopedia.com/history/encyclopedias-almanacs-transcripts-and-maps/mwindo

12 http://editoramelhoramentos.com.br/v2/titulos/sundjata-o-principe-leao/

13 https://www.sahistory.org.za/article/empire-mali-1230-1600

14 https://migreseunegocio.com.br/jornada-do-heroi/

15 https://orias.berkeley.edu/sundiata

16 https://www.naija.ng/624747-exclusive-hausa-history-daura-kusugu-well-bayajidda-myth-photos.html#624747

17 http://dierklange.com/pdf/recent_articles/2012_BAYAJIDDA_MAY_31_Deckblatt_2.pdf

18 https://www.britannica.com/place/Hausa-states

19 http://africanpoems.net/epic/the-story-of-miqdad-and-mayasa/

20 http://africanpoems.net/epic/the-legend-of-liyongo/

21 https://aulazen.com/historia/a-cultura-e-civilizacao-swahili/

22 http://www.oapen.org/search?identifier=646721

23 http://mythfolklore.blogspot.com/2014/06/africa-makoma.html

24 https://www.mythpodcast.com/4317/53-african-folklore-crocodile-tears/

25 https://www.rejectedprincesses.com/princesses/thakane