terça-feira, 3 de março de 2020

Assistindo Dead Souls pt. 1

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Ano passado embarquei na jornada de assistir Shoa, omonumental documentário de Claude Lanzmann sobre os campos de concentração nazistas. A tarefa foi árdua, mas se revelou extremamente reveladora da natureza humana e da fatalidade de grandes eventos assombrosos da face da Terra que passam despercebidos quando ocorrem.

E de surpresa, me apareceu no feed do Mubi Dead Souls pt. 1, a primeira parte de um igualmente monumental documentário lançado em 2018 acerca dos campos de reeducação e reabilitação comunistas na China.

Tudo começou com a revolução cultural e a partir de 1957 o governo comunista chinês começou a enviar direitistas para um campo de trabalho no deserto de Gobi com o intuito de serem reeducados através do trabalho. Entre 550.000 e 1.300.000 pessoas foram selecionadas, mas o número não é exato. Ou seja, quase 1% da China inteira foi enquadrada dentro de um único campo de concentração, para trabalhos forçados.

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O filme começa com Zhou Huinan, um nacionalista e direitista, de fato, mas um direitista raiz, um cara de direita antes disso ser legal e antes das perseguições se iniciarem na China maoísta. Seu irmão também fora preso e fora entrevistado antes da sua morte, muito debilitado preso a uma cama. Acompanhamos seu funeral e a tristeza e raiva que acompanha a vida de seus parentes, em especial seu filho, que chora e clama vingança contra um regime que nunca o deixou em paz, nem mesmo no seu leito de morte.

E com isso chegamos a uma hora de filme. Uma das mais de 8 horas com relatos detalhados de sofrimentos, lutas, indignações e injustiças. Ao contrário de Shoa, aqui não temos grandes imagens abertas, longos takes de cenários que aumentam a imersão do espectador com o que é relatado. Ao contrário, temos um olhar mais intimista. Longas entrevistas com pessoas que nunca tiveram a oportunidade de relatar os horrores que viveram. Nos é dito em determinado momento que muito da história jamais foi dita ou porque foi esquecida ou porque morreu com aqueles que a viveram.

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E esse olhar intimista, filmado de dentro da casa dos sobreviventes, confortáveis e seguros em suas casas nos revela detalhes interessantes. O que começou com um reação contra os nacionalistas do Kuomintang, o partido mais influente da China na época, se tornou uma perseguição em massa de qualquer pessoa que pensasse uma vírgula diferente das ordens vindas do partido comunista. E assim foram presos membros do partido, pessoas fieis à causa, mas que ousaram discordar ou simplesmente questionar uma ou outra ordem vinda de cima.

Só que tudo isso nos é revelado nas entrelinhas das conversas. O principal objetivo do documentário é revelar as experiências que os sobreviventes passaram nos campos de concentração. A tortura já começava na viagem, onde os prisioneiros eram atulhados em vagões de trem, para chegar num projeto de fazenda onde eles dormiam com um simples cobertor (sim, um cobertor, não um cobertor em um colchão e travesseiro, era só o cobertor), vivendo dos restos que as pessoas que trabalhavam na cozinha conseguiam surrupiar dos olhares atentos e cruéis dos guardas. A fome a doença eram as principais companheiras desses presos e a morte era certa.

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Com um número absurdo de mortos, seus corpos eram enterrados em Mingshui, onde ainda hoje é possível encontrar ossos espalhados pela terra. E assim chegamos ao final dessa primeira parte, acompanhando Fu Haisheng, um simples fazendeiro de ovelhas que mora na vila de Mingshui, vizinha ao cemitério de direitistas.

Apenas no campo de Jiabiangou, 3200 pessoas foram presas das quais apenas 500 sobreviveram, muitas fugindo. A perseguição aos direitistas continuou até o final da revolução cultural.