terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Assistindo “Shoah” (1985) – parte 1

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“Shoah” é um documentário francês de 1985 tratando do Holocausto (também chamado de “Shoah”, coisa que aprendi junto com esse filme), dirigido por Claude Lanzmann e que se expande por mais de 9 horas.

Devido ao seu extenso tamanho, o filme foi divido em 2 partes pelo diretor e é comercializado numa versão para DVD com 4 CD’s (não tenho conhecimento da versão Blu-Ray), alcançando uma densidade alta demais para ser discutida num post apenas. É por essa razão que irei dividir a dica desse filme em dois, dessa forma, eu mesmo posso entender melhor essa obra monumental.

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O filme começa nos apresentando a história de Simon Srebnik, um sobrevivente de Chelmno, um dos campos de concentração nazista estabelecido na Polônia. Quando tinha apenas 13 anos, Simon viu a invasão nazista da Polônia, seu pai ser morto num gueto, foi preso com a mãe, que foi morta numa câmara de gás

e só permaneceu vivo, pois sabia cantar e os soldados nazistas gostavam disso. Quando o campo foi liberado pelos sovietes, Simon levou um tiro na cabeça, mas conseguiu sobreviver, pois a bala não acertou nenhum ponto vital. Após isso, fugiu para Israel.

A partir daí, começam as histórias intercaladas com outros sobreviventes do Holocausto, de diferentes campos de concentração. O filme inteiro é formado por essas entrevistas, descritivas e levemente soltas. Lanzmann não se preocupa em criar uma narrativa linear com essas histórias, ele apenas quer nos apresentar os fatos de acordo com aqueles que viram tudo o que aconteceu.

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Mais ou menos aos 48 minutos de filme, somos apresentados a Henryk Gawkowski, um condutor de trem polonês que trabalhou durante a invasão nazista levando, entre outras coisas, prisioneiros para o campo de concentração de Treblinka. A partir daí conhecemos o lado de pessoas comuns vizinhas aos campos de concentração.

A Polônia é conhecida pela sua “covardia” durante o período nazista e este filme é criticado sob esse ponto de vista, pois nos apresenta relatos realmente perturbadores de poloneses que viam judeus sendo enviados para os campos de concentração e acenavam para eles que iriam morrer. Mas como nos diz Gawkowski, era trabalhar ou morrer. Esse pensamento está presente em praticamente todos os testemunhos de polonoses no filme, a escolha que eles fizeram foi pela vida e não dá pra culpar alguém por isso.

Ainda assim, Lanzmann mantém-se fora do julgamento, fazendo apenas questionamentos, alguns ferozes, que entregam sua indignação com a atitude complacente dos poloneses comuns. Essas partes foram as que mais me chamaram a atenção no filme, pois não me lembro de ter visto esse lado da história num documentário, de maneira tão crua.

Os depoimentos assustam ainda por mostrar lados que até se contradizem. Enquanto temos judeus falando que eram levados em vagões de carga, amontoados por dias, sem água ou comida, sentados em cima de cadáveres; do outro lado temos poloneses dizendo que viam judeus sendo levados nos vagões de passageiros, às vezes até descendo em estações, comprando alguma coisa e voltando para dentro dos trens.

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É claro que a memória afetiva nesses momentos não é confiável, mas o tratamento a judeus também não era padronizado. Como nos diz um dos sobreviventes, Rudolf Vrba, se um agente da SS estivesse de bom humor, era capaz de tratar bem qualquer um.

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O documentário conta ainda com uma entrevista realizada com um criminoso de guerra nazista, Franz Suchomel, que participou ativamente do programa de eutanásia do governo nazista, Operação Reinhard. Suchomel aceitou ser entrevistado, mas não filmado. Lanzmann, num ato que desafia qualquer debate ético, utilizou de câmeras escondidas para realizar a sua entrevista. Esse momento me deixou confuso e só fui entender porque a imagem é diferente, utilizando a filmagem da tela onde é exibida a imagem de Suchomel. Fiquei me perguntando o que estaria por trás disso... estética? Praticidade? Não, era apenas ousadia mesmo.

Suchomel apresenta em detalhes, inclusive apontando num mapa, como era feita a separação de judeus para as câmaras de gás, onde ficavam alojados, como e por onde se livravam dos corpos. Em nenhum momento, o criminoso declara ter se arrependido.

A análise de um historiador quase no final da primeira parte expõe a relação histórica milenar que levou até o extermínio de judeus e sua posição, sempre frágil, por onde quer que eles passassem. Desde o surgimento do cristianismo, passando pela idade média, Martinho Lutero, até a República de Weimar, o Holocausto foi apenas a culminação, como se diz, a “Solução Final” para o problema dos judeus.

Não concordo inteiramente com o que ele disse. Nessa questão, cada um puxa a sardinha pro lado que quer, mas a história não é essa linha reta onde um acontecimento pontual leva a uma série de acontecimentos pontuais que culminam no Holocausto. Não acho que seja assim que funciona.

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De qualquer forma, ele chama a atenção para um aspecto importante do filme, o uso da linguagem. Os nazistas nunca utilizaram as palavras extermínio, morte ou assassinato. Você não vai encontrar isso nos documentos deles. A linguagem é sempre muito vaga, aberta a interpretação. O Holocausto fora anteriormente chamado de “Solução Final”, a solução para acabar com o problema de vez. As câmaras de gás foram apenas uma invenção saída de umas poucas cabeças mais maliciosas, não foi orquestrado por Hitler, que convenceu cada um de seus subordinados de que essa seria uma boa saída para o problema que tinham nas mãos.

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Após mais alguns depoimentos (inclusive um que nos apresenta o momento mais belo do filme inteiro, até então, que é o de uma mulher alemã, a sra. Michelsohn, esposa de um professor nazista. Lanzmann a questiona sobre um garoto que cantava e ela diz que lembrava dele, inclusive lembrava da música que ele cantava. Seu relato culmina na imagem de Srebinik percorrendo os campos onde antes se situava a prisão em que estava), Lanzmann termina as mais de 4 horas da primeira parte do filme lendo uma carta circulada entre o governo nazista ordenando a Saurer a construção de novos veículos com tecnologia para deixar o extermínio mais efetivo. A linguagem técnica, distancia a elaboração da prática, tornando tudo mais assustador.

Não sei como irá se iniciar a segunda parte. São mais 4 horas de filme e irei terminar logo, mas seria interessante se Lanzmann mostrasse como o governo nazista aparelhou a propriedade privada, excluindo-a do vocabulário jurídico e eliminando-a, de fato, pois ainda hoje acredita-se que o governo nazista, economicamente, seguia algum tipo de doutrina liberal, quando a realidade é muito distante disso.

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Terminando numa nota mais do que triste, o filme deixa uma pulga atrás da orelha para que possamos seguir, animados, para a segunda parte do documentário e suas mais de 4 horas de duração.

Não vou deixar nota, pois ainda não terminei de assistir. Considere essa a primeira parte de uma dica ainda maior, mas, por enquanto, “Shoah” tem valido muito a pena.