sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Como vencer a ironia?

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Essa semana o Pânico foi palco de uma das mais lamentáveis e deprimentes cenas do ano na cultura popular brasileira. Como de praxe, o programa usou uma data especial para provocar um debate acalorado entre os seus participantes, dessa vez, usando do dia da consciência negra, chamaram o Professor Paulo Cruz e o comediante Yuri Marçal.

Não assisti ao programa todo e só fiquei sabendo do acontecido através do canal do Negão, que fez um vídeo comentando o que aconteceu no programa. Para você que não está por dentro, assim como eu também não estava, aí vai um resumo: o Professor Paulo Cruz entrou no programa disposto a um diálogo sobre as questões que envolvem os negros no país e o Yuri entrou fantasiado de "branco", mas basicamente estava fantasiado de Carl Banks. Com uma ironia mordaz, ele concordava com cada frase do Professor e expandia os seus comentários, colocando-o num pedestal, apenas para caçoar dele entre os seus pares. Um rápido giro pelo seu Twitter mostra que a estratégia é eficiente.

Yuri venceu o Professor.

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Mas a questão que eu faço é: tinha como não vencer? Yuri usou de uma sutil, porém vociferante ironia para debater com Paulo Cruz e é possível vencer a ironia?

Como dizia David Foster Wallace, ironia é uma arma cruel e muito eficiente como forma de escapar da triste realidade que nos cerca. No entanto, ela não cria nada, ela não constrói pontes e não serve como forma de solucionar problemas reais, tornando-se então como o canto de libertação do pássaro que se percebe engaiolado, mas sem fazer nada contra a gaiola que o cerca.

Isso é ironia e é isso que o Yuri fez. Ele não criou pontes, não amadureceu o diálogo e nem conseguiu criar saídas que beneficiassem ambos os lados do discurso. Ao mesmo tempo em que ele ganhou, ele também perdeu. Perdeu a oportunidade de dizer que cotas raciais serviram para fazer os negros serem maioria nas universidades brasileiras, perdeu a chance de apontar o número absurdo de negros vítimas de homicídio no país e a chance de falar do conselheiro racista do Santos que não foi indiciado pelo MPF pelo crime de racismo.

Tudo isso seria discutido pelo Professor Paulo Cruz e véus cairiam para mostrar que a verdade não é preto no branco, mas não... ele teve que usar a ironia e assim conseguir uma vitória, mas uma vitória equivalente àquela do gordinho dono do bola que, por ser o último a ser escolhido, pega a bola e leva pra casa, acabando com a brincadeira de todo mundo.

PAULO CRUZ

No caso, ele destruiu o diálogo.

A ironia é a filha do Ódio com o Humor. Ela tem uma face bonita, mas é cruel por dentro, é chata, é irritante, é egoísta e mimada. Como figura de linguagem, funciona muito bem na literatura, mas ao ser carregada para os nossos relacionamentos, só causa mais separação. Seus efeitos são devastadores e o fato da ironia ter sido alçada a um patamar tão elevado em tempos recentes, como se fosse coisa que só gente "inteligente" sabe usar e apreciar, nossas relações pessoais estejam tão destruídas.

E de novo, volto a questão título do texto: como vencer a ironia?

Gostaria de chegar a uma conclusão aqui, mas não tenho uma. David Foster Wallace elaborou um conceito chamado de "New Sincerity" que iria guiar muitos dos futuros autores e criadores de cultura por aí. Por um breve período, isso até funcionou, mas nunca chegou a ser uma tendência real, algo que tivesse impacto de verdade, muito menos venceu a tão destrutiva ironia, que continua mais viva do que nunca.

É um inimigo pernicioso essa tal de ironia, reconhecer seus malefícios é um primeiro passo para poder vencê-la. Será que podemos?

https://youtu.be/2doZROwdte4