sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O encerramento da mente brasileira

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Iniciei uma aula optativa esse semestre na faculdade e estou achando aterradora a experiência. Logo nas primeiras semanas vi uma demonstração de ignorância tão gigantesca que aquilo me deixou mal por quase 2 semanas. Vendo que aquilo estava me fazendo mal, decidi abordar aquelas aulas como um antropólogo estuda povos antigos e procuro estudar aquele comportamento abjeto demonstrado por mentes, supostamente, iluminadas.

Tudo começou com uma mudança de sala. Eu, aluno de humanas, fui jogado com o resto da turma que optou pela tal aula no bloco de engenharia. Logo na primeira aula, uma menina-menino do curso disse, brincando, que se sentia oprimida pelo nível de heterossexualidade exalada pelos corredores daquele bloco.

Na semana seguinte, a professora chegou mais cedo para a aula (assim como eu e alguns outros colegas de turma) e ainda haviam alunos de engenharia na sala. O grupinho de futuros engenheiros ajudaram a professora a arrumar a sala, ajeitaram o seu laptop numa mesa, conectaram ao datashow da sala, limparam a lousa, mas um deles cometeu o erro de ter vindo com uma camiseta escrito "Pró-vida". Foi o suficiente para acabar com toda o ritmo da sala, pois provocou protestos acalorados de alunos "pró-escolha" (como se aborto fosse escolha) em reflexões na aula.

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A aula em si é de literatura, mas todos os textos, poemas épicos, tragédias gregas, fábulas e até contos de fada são analisados sob uma ótica feminista. A sala, majoritariamente feminina, colabora para as discussões com relatos familiares, situações transmitidas por amigas, reportagens sensacionalistas e altos e amargurados comentários acerca do patriarcado, fazendo da aula uma verdadeira terapia de jovens desiludidas e pessimistas.

É o suficiente para retomarmos ideias de dois grandes pensadores das ciências humanas e que compartilhavam o mesmo sobrenome, mas que não tinha parentesco algum: Harold e Allan Bloom.

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Allan foi um filósofo americano que ganhou notoriedade em 1987, já no final da vida, ao lançar o livro The Closing of the American Mind, uma das melhores leituras que fiz esse ano e já entrou para um dos melhores livros da minha vida. O livro, uma crítica ao sistema universitário estadunidense, traçava uma regressão clara que começou nos anos 60 com os movimentos civis e que terminaram por entrar nas universidades, sufocando o pensamento científico das ciências humanas, a começar pelo relativismo, que assolou as universidades a partir das décadas de 60.

Influenciadas pelos filósofos pop franceses (Foucault, Derrida, Delleuze, et al), que por sua vez eram influenciados por Heidegger (não a toa são chamados por Allan como neo-heideggarianos, numa tradução livre), as universidades americanas deram continuidade ao plano de Nietzsche de invalidar as ciências naturais. O problema? Nietzsche falava de estética e eles começaram a aplicar as noções negativas de Nietzsche para tudo, da filosofia clássica à ciência política, esquecendo que a ciência não só depende da filosofia, como a filosofia é uma pré-ciência. É por causa da filosofia que existe ciência empírica, ciências naturais e, em última instância, ramos como a engenharia.

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Esse distanciamento das ciências humanas das ciências naturais provocou (e ainda provoca) uma ruptura dentro das universidades que faz mais mal às ciências humanas do que às ciências naturais ou técnicas (como são conhecidas hoje os ramos de engenharia e afins), pois esse isolamento priva os estudiosos das ciências humanas do contato daquilo que é o seu próprio objeto de estudo, o ser humano. É aí que Allan Bloom cria uma das melhores analogias que eu já tive o prazer de ler em toda a minha vida, ele diz que as ciências humanas se tornaram numa Atlantis, cada vez mais isolada e afundando, eu diria, nas águas da irrelevância.

Os cursos então se fecham cada vez mais em si mesmos, formando mais radicais do que profissionais. A pessoa que sente a "opressão heterossexual" hoje é a professora de ensino regular de amanhã. A discussão do aborto é mais uma questão de lógica do que uma questão de saúde pública, muito menos de saúde da mulher, mas não há uma aula de lógica para os alunos de humanas fora de filosofia, menos ainda há alunos de filosofia interessados em lógica de fato. Analisar fatos, argumentos, pesá-los, compará-los e saber as sua real medida é uma prática puramente filosófica e necessária para a vida se você quiser se considerar minimamente inteligente, mas não é isso que se faz nas faculdades de humanas atuais (ou, pelo menos, na maioria).

Há um fechamento cada vez maior da mentalidade universitária, cada vez mais caixinhas são criadas e ideias são jogadas nelas junto com as pessoas que supostamente as defendem e se defendem ideias cada vez mais fechadas em si mesmo, como o feminismo. Toda, TODA, obra literária que eu vi naquela aula foi analisada sob um viés feminista, até mesmo uma história como Snow Queen é usada para se atacar o patriarcado.

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Esse foco exagerado em apenas algumas poucas ideias que correspondem a ânsia de se dar voz a grupos minoritários (embora eu seja o único pardo da sala) criou o que Harold Bloom chamou de escolas de ressentimento.

Estudos feministas, pós-coloniais e pós-estruturalistas são apenas algumas das principais ideias que formariam as tais escolas de ressentimento. O termo é pejorativo e ofende muita gente, mas basta frequentar uma aula dessas pra saber que o termo é, na verdade, muito propício. Como já disse, TODA obra literária é analisada sob esse viés e eu nem acho isso um absurdo, é possível sim, afinal a literatura é uma caixa aberta de onde você pode tirar o que quiser. No entanto, detalhes importantes são deixados de lado para tirar uma moral que satisfaça o ego daquelas mulheres ressentidas em sala de aula, propiciando a elas um ambiente para expurgar as suas angústias e desgostos com os homens fora da aula.

Isso até que a atividade intelectual se torne hábito. A partir daí, ela vira uma professora que nem se esforça mais em analisar a obra, apenas repete aquilo que leu a vida toda e transmite, no automático, todas aquelas frases de efeito que, de tão vagas, se encaixam em qualquer lugar.

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E dessa forma, como bem salientado por Harold Bloom, se esquece de explorar os aspectos estéticos das obras, a escrita elaborada de Andersen, as ricas narrativas de Dickens, cheia de personagens e cenários robustos, a profunda reflexão que uma fábula de Esopo pode provocar e até mesmo os bravos insights que uma tragédia grega pode nos trazer sobre a natureza humana.

Tudo isso é esquecido em nome do quê? De uma ideologia. Palavra essa que é proferida a torto e a direito nas faculdades de humana hoje, às vezes em tom jocoso, para caçoar daquelas figuras "nefastas" que são contra ela, esquecendo de que o próprio deus deles, Marx, era contra essa coisa aí de ideologia.

Allan Bloom morreu em 1992, vítima de AIDS e Harold Bloom morreu essa semana, provavelmente vítima de complicações de saúde relacionadas a cirurgias cardíacas e problemas ósseos, não sei ao certo e isso não importa. Esses dois gigantes das ciências humanas são até hoje combatidos nas universidades brasileiras, mas o cenário que eles pintaram é o cenário que se vê hoje. As universidades brasileiras os detestam porque eles são o espelho pelo qual elas enxergam o seu interior e, no interior, ninguém é bonito.

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